Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
A Moça do Calendário

Destruição criativa

por Bruno Carmelo

Durante a apresentação deste projeto ao público, a diretora Helena Ignêz afirmou se tratar de um “filme utópico”, buscando a “descolonização do pensamento”. Por “utópico”, ela compreende a criação de uma sociedade anticapitalista, na qual não existem desigualdades sociais. Através da “descolonização”, imagina uma estrutura alheia aos filmes comerciais, adotando questões políticas, sociais e estéticas tipicamente brasileiras. A Moça do Calendário busca resgatar o espírito anárquico do Cinema Marginal, do tropicalismo e demais vanguardas dos anos 1960-70.

O personagem principal não é a moça do título, e sim o mecânico Inácio (André Guerreiro Lopes), que renunciou à família rica e hoje vive de pequenos bicos, sofrendo a exploração do patrão tirânico, representação grotesca do empresário ganancioso. Para refletir sobre o real, trama prefere o absurdo à realidade. Entram em cena esquetes assumidamente caóticas, com direito a diálogos hilários sobre o comunismo, a reforma do trabalho desejada por Michel Temer e o possível retorno de Lula no cenário político em 2018. O roteiro faz questão de tocar em temas atuais sem meios termos: ele afirma suas posições e vontades com vigor juvenil.

Os melhores momentos ocorrem nos delírios de Inácio, seja em encontros fictícios com a moça do calendário (Djin Sganzerla), seja com os colegas da oficina mecânica. A diretora aposta em números musicais, performances e outras manifestações artísticas libertárias e libertinas. Elas se conectam de modo metafórico à trama central, como se fossem parênteses na vida aborrecida do protagonista. Em termos cinematográficos, A Moça do Calendário não tem medo do trash, do insano. Muito pelo contrário, aborda todas as formas de representação não convencionais, situando-as pertinentemente no centro da cidade de São Paulo.

O debate político, no entanto, é menos frutífero do que a parte estética. Helena Ignêz coloca na boca de seus personagens frases didáticas, explicando a importância do Dia da Consciência Negra, do orgasmo feminino e da Reforma Agrária. O resultado é divertido por sua artificialidade, mas como comentário do país, torna-se retórico – seu valor se encontra em sua própria existência, e não na reflexão proposta. O filme reafirma valores aos quais já havia aderido desde a primeira cena, reiterando princípios de forma pedagógica.

Apesar das ressalvas, é louvável que a cinematografia brasileira acolha projetos tão férteis quanto este. Um personagem defende, a certa altura da trama, a “destruição criativa”, algo que representa muito bem o espírito do projeto como um todo. A Moça do Calendário avança com o furor de um manifesto, gritando a plenos pulmões sua crença num mundo melhor.

Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.