A arte da observação
por Bruno CarmeloNas primeiras imagens do filme, Niñato está correndo para chegar a uma casa de shows e cantar. Descobrimos que este é seu nome de rapper no cenário independente espanhol. No entanto, esta será a única cena do músico se apresentando ao público. O que realmente interessa ao cineasta Adrián Orr é acompanhar a vida cotidiana do protagonista, tendo que cuidar de três crianças pequenas com recursos financeiros limitados, contando apenas com a ajuda da mãe e da irmã.
Ao invés da vida de artista, temos diversas sequências silenciosas dos momentos em que os pequenos são acordados, tirados da cama ou forçados a fazer a lição de casa. Em outras cenas, Niñato discute com familiares sobre a melhor maneira de educar as crianças: vale bater? Vale gritar? Entre a hora de deixá-los na escola e buscá-los de volta, ele tenta criar suas canções, vender alguns CDs a amigos, encontrar a nova namorada. O filme privilegia a banalidade, acompanhada com real atenção e carinho. Não existe tabu no olhar da direção: todo momento do dia parece digno de captação.
Niñato se apresenta oficialmente como documentário, mas a obra navega pela fronteira entre o registro documental e o controle fictício. Orr posiciona sua câmera em algum canto dos cômodos, seguindo cuidadosamente as movimentações dos personagens. No entanto, algumas ações soam encenadas, ou no mínimo reproduzidas para a câmera, devido ao cuidado estético impossível de manter diante da espontaneidade. Os enquadramentos são cuidadosos até demais, surpreendendo pelo modo como a incrível proximidade com os personagens não implica a artificialidade dos mesmos. As pessoas agem de maneira livre diante da imagem, gerando uma bela impressão de veracidade.
O resultado é uma produção de porte pequeno, porém com ambições cinematográficas notáveis. A câmera se condiciona aos personagens, privilegiando a luz natural, os sons fora de quadro, a interação entre as crianças ou ainda os desabafos do pai. Este é essencialmente um filme de observação, livre da vontade de incluir conflitos extremos ou conduzir o espectador a algum rumo preciso. Ao longo de alguns dias, o protagonista não se desenvolve, não se transforma, não caminha a lugar algum: a obra funciona como raio-X de um momento preciso, fazendo da imobilidade das situações seu tema e seu trunfo. Para Orr, o cotidiano é o avesso do espetáculo.
Talvez a premissa se prejudique um pouco pela falta de desenvolvimento – a rígida linearidade pode se confundir com monotonia –, no entanto o diretor tem plena consciência do que pode extrair através desta estrutura, encerrando a narração após enxutos 72 minutos. Neste tempo, o espectador terá conhecido um pai como tantos outros, comovente por sua universalidade e pela mistura tão humana de erros e acertos. Niñato aposta no realismo como despojamento total, uma bem-vinda de proposta de reflexão sem julgamentos.