Um inimigo entre nós
por Bruno CarmeloVocê já conhece essa premissa: uma cidadezinha leva uma vida completamente pacífica até a chegada de um estranho. Vindo de lugar algum, esta figura provoca curiosidade, paixão, ciúme, revolta, e revela quem os habitantes realmente são por trás da máscara da cordialidade. A introdução do elemento dissonante remete a uma experiência comportamental envolvendo ratos de laboratório, ou alguma simulação sociológica no estilo dos reality shows de confinamento. A ideia é compreender de que maneira, e com qual velocidade, a estrutura começará a ruir. De Teorema a Dogville, de O Lamento a O Hóspede, o cinema tem explorado com ironia e senso crítico a premissa do invasor adorado.
Gutland traz uma nova versão da receita. O alemão Jens (Frederick Lau) chega a um pequeno vilarejo luxemburguês em busca de emprego. Curiosamente, os simpáticos homens que o acolhem não perguntam de onde vem, nem o que fazia anteriormente. Jens tampouco faz perguntas aos moradores. Assim, decidem se ajudar, convivem juntos, criam amizades, dão aulas de música uns aos outros. Até perceberem que talvez tanto o estrangeiro quanto os locais escondam segredos. A primeira metade da trama é, sem dúvida, a mais eficaz. Partindo de uma ótima cena inicial, o diretor Govinda Van Maele constrói um suspense rico em pistas, mas de difícil antecipação: de que servem as fotos eróticas encontradas? Por que um morador desapareceu? Por que Lucy (Vicky Krieps) se afeiçoa tão rapidamente a Jens?
O suspense é construído através de bom uso da linguagem cinematográfica. Os grandes planos abertos dos milharais sugerem ao mesmo tempo beleza e perigo, fartura e isolamento. Jens é filmado de longe, através de janelas ou pelas frestas das árvores, como se estivesse sendo observado por alguém. Sons nas redondezas sugerem atividades ocultas aos olhos do protagonista e aos do espectador. Sem saber exatamente o que estas pessoas ocultam, o espectador pode pressentir que há algo por trás de tantos sorrisos dos idosos, e de tantas mulheres casadas querendo se jogar nos braços do alemão. Curiosamente, a tensão é construída a céu aberto, em plena luz do dia, ao invés dos tradicionais casarões abandonados em cenas obscuras.
Por volta da metade da trama, ou talvez mais perto do terço final, o roteiro enfim revela a verdade por trás da chegada de Jens – um tanto frustrante, diga-se de passagem – e prepara a maior surpresa para as revelações ligadas aos fazendeiros. A guinada surpreende tanto por sua ambição quanto pela improbabilidade. De fato, Van Maele consegue trazer algo inesperado após plantar tantas sugestões. Mas com os novos elementos em jogo, Gutland passa a ter cada vez menos sentido. Ao invés de esclarecer, o roteiro trata de embaçar ainda mais o caminho, sugerir mais possibilidades, deixando o espectador fazer o que quiser deste quebra-cabeça. A reviravolta soa vazia, como se a intenção de pegar o espectador desprevenido ocorresse em detrimento da própria história.
Mesmo durante o segmento final, o suspense não deixa de ser eficaz e dotado de belas composições – a ameaça dentro do milharal, em particular, funciona muito bem -, no entanto soa menos como uma investigação psicológica do que uma brincadeira com os sentidos do espectador. É uma pena que Jens, Lucy e os demais moradores tenham sido sacrificados em nome das sensações fáceis, pois certamente seriam capazes de provocar conflitos suficientes através da oposição de seus modos de vida e de maneiras de pensar. A surpresa apenas tira o filme dos trilhos.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.