Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Praça Paris

Jogo de poder

por Francisco Russo

No Rio de Janeiro, a violência está sempre ao redor. O barril de pólvora que alimenta a cidade partida gera uma cultura do medo onipresente, seja pelos relatos que surgem aqui e ali, disseminados pela internet ou pelo bom e velho boca a boca, ou mesmo por ter sofrido na pele alguma agressão, seja física ou psicológica. Em seu novo filme, a diretora Lucia Murat coloca o dedo na ferida na séria questão da tensão social carioca, que gera um jogo de poder torto que envolve, também, as autoridades legais. O problema é que, nem sempre, tal análise surge despida dos preconceitos sociais que denuncia.

Há dois universos díspares em Praça Paris, representados pelo antagonismo de suas protagonistas. De uma lado há Glória, interpretada pela ótima Grace Passô: moradora de uma favela, ascensorista, estuprada quando criança, irmã de um perigoso bandido que está na prisão, adepta da tese do "aqui se faz, aqui se paga". Do outro há Camila, terapeuta interpretada pela limitada atriz portuguesa Joana de Verona, que não está nem um pouco acostumada a lidar com este grau de violência, seja por sua condição social de classe média ou pela própria origem europeia. As duas trabalham no mesmo local, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e se encontram justamente quando Glória busca apoio psicológico em sessões de análise.

De imediato, Lúcia Murat trabalha a questão que, por mais que a violência esteja sempre ao redor, lidá-la de forma direta é muito mais dura. É interessante notar como o encontro - e, posteriormente, o confronto - entre Glória e Camila alterna ao longo do filme, de início com a empáfia típica de quem analisa para uma gradual ameaça velada. Há desde o início um jogo de poder também entre elas, espelho da divisão de classes que existe fora do consultório - é a luta pela sobrevivencia, com o que há em mãos.

Por mais que tal dinâmica seja bastante interessante, não só pelas questões levantadas mas também pelo aspecto psicológico envolvido, há dois empecilhos que atrapalham bastante a fluência: a diferença de qualidade entre as duas atrizes e o fato de que, em vários momentos, a narrativa dá razão ao viés acuado de sua protagonista estrangeira. Ou seja, apesar de apontar de forma escancarada as diferenças de tratamento entre brancos e negros, moradores da favela e do asfalto, o roteiro escrito pela própria Lúcia Murat em parceria com o autor Raphael Montes aponta uma certa preferência pela elite, também pelo fato de que todos os moradores da favela retratados, de alguma forma, possuem um pé na ilegalidade, seja na atualidade ou no passado. É como se o filme assumisse de antemão um juízo de valor, onde o estrangeiro/integrante da classe média é ingênuo e há uma cumplicidade, tácita ou não, de quem não vive no asfalto - o que, por si só, também é uma espécie de preconceito.

A presença de Raphael Montes, autor de vários livros de suspense e um dos criadores da série Supermax, é também responsável por um dos aspectos mais interessantes de Praça Paris: a mescla de gêneros, com o uso do drama social tipicamente carioca para explorar arquétipos do suspense com base na tensão social existente na suposta cidade maravilhosa. Tal situação é explorada principalmente a partir dos diálogos rascantes e endurecidos vindos de Glória, potencializada pelo olhar penetrante e raivoso de Grace Passô, que a tornam uma ameaça prestes a explodir - sob o viés da terapeuta, é bom ressaltar. Se por um lado a criação desta possível vilã atende à situação de tensão prevista, por outro há também uma certa fragilidade no roteiro em relação ao modo como Camila busca alternativas diante da pressão sentida na pele. O desfecho, de certa forma anunciado no decorrer do longa-metragem, é o caso mais escancarado, pela ausência de opções de certa forma óbvias - as quais, é claro, não serão aqui mencionadas para não dar spoiler ao leitor.

Em meio a acertos e erros ao retratar os preconceitos inerentes à vida no Rio de Janeiro, Praça Paris traz como maior trunfo a coragem em tocar em questão tão delicada e complexa, de forma a levantar questionamentos necessários. Da ferida aberta tipicamente carioca sobre o combate à violência por uma polícia que muitas vezes é vista como inimiga, o filme passa pelo preconceito do estrangeiro perante a realidade brasileira e ainda o necessário processo de endurecimento para seguir em frente, às vezes ignorando - ou desprezando - questões legais ou morais. Há muito a se analisar no âmbito da sociologia a partir deste filme, até mesmo seus enganos sobre as escolhas narrativas envolvendo as protagonistas, o que também é reflexo de tal complexidade social que atinge não só a arte, mas toda a população do Rio de Janeiro. Um bom filme, com uma ótima atuação de Grace Passô, que reflete bem o pessimismo atual existente na cidade.

Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.