Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
A Outra História do Mundo

O triunfo da mentira

por Taiani Mendes

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano / sem dinheiro no banco / sem parentes importantes / e vindo do interior”. Faz lembrar o saudoso Belchior o bigodudo Esnal (Cesar Troncoso), personagem principal da comédia dramática A Outra História do Mundo. Excêntrico, fora da curva, em dado momento completamente recluso, habilidoso com as palavras e uruguaio – país onde o cantor cearense foi localizado após suposto desaparecimento em 2009 –, Esnal é um herói melancólico, homem solitário que tem a mente brilhante como única arma.

O ano da trama, adaptada do romance Alivio de Luto, de Mario Delgado Aparaín, e com toques de Romeu e Julieta e As Mil e uma Noites, é 1983. Militares no poder e população refém. Quando o novo interventor estabelece que o bar deve fechar cedo, acabando com a vida noturna da cidade, Esnal e o fiel escudeiro Milo (Roberto Suárez) voltam aos tempos de adolescência elaborando um plano burlesco para exigir o fim da medida. As coisas dão errado e o que até então era uma comédia interiorana torna-se um drama político. Nunca foi brincadeira a ditadura e o brusco choque de realidade, para o público e para os personagens, é um grande acerto do diretor Guillermo Casanova – também roteirista ao lado de Inés Bortagaray (Minha Amiga do Parque).

Sem se aproximar do registro violento e brutal dos crimes cometidos durante os regimes antidemocráticos latino-americanos, Casanova decide pela angústia do desaparecimento sem pistas e a incerteza a respeito da sobrevivência como alicerces do real. São enfocadas as consequências do ocorrido nas vidas das pessoas próximas e é a dor da perda do amigo que faz Esnal chegar ao extremo tanto do isolamento social quanto da exploração de sua criatividade fantasiosa. Forrest Gump que engana inclusive a si mesmo, o personagem, que transborda sentimento na interpretação precisa de Troncoso, é o coração do qual o longa-metragem não descuida em momento algum, ao contrário do que faz com as filhas de Milo e os coadjuvantes em geral.

Como o conteúdo das aulas de História de Esnal, A Outra História do Mundo tem coisas estranhas como o romance insinuado da sequência de abertura até a última, mas que nunca de fato ocorre; um temporário teatro de sombras; enquadramentos totalmente inesperados; e mais para o final uma mobilização popular que vai do nada a lugar algum; porém mais forte do que toda a bizarrice inexplicável no ar – que até se relaciona com os mitos do clã Striga – é a representação dos estereótipos relacionados à vida numa pacata cidade pequena. O rádio une todos, o carteiro é o mais bem informado da região, a dona da loja de roupas é a sedutora irresistível e mesmo os vilões têm uma certa ingenuidade (“não são maus, são burros”).

Contando estórias ao ministrar um curso de História sobre os eventos fundamentais do mundo até a descoberta da América, Esnal manipula pessoas, expectativas, imagens e o próprio conceito de que quem detém o poder sobre a narrativa é o vencedor. O cineasta segue o mesmo caminho ao encher de graça e otimismo o conto a respeito de um período que nada teve de leve. A inteligência e a lealdade, por fim, valem mais do que qualquer força. E pouco importa se é tudo uma farsa.