Viagem ao centro da Terra
por Taiani MendesDos ofícios mais insalubres e perigosos do mundo, a mineração só costuma ser lembrada em decorrência de alguma tragédia que mata dezenas de trabalhadores. Ben Russell, documentarista estadunidense premiado no CPH:DOX e no Festival de Roterdã, dedica seu novo longa-metragem à investigação etnográfica dos mineiros, tendo como objetos de pesquisa dois grupos, um na Sérvia, outro no Suriname.
As experiências não são misturadas. Boa Sorte começa exclusivamente com os sérvios e a metade final pertence aos surinameses, cabendo ao espectador a conjugação e comparação ao final da exibição. Para ajudar, Ben adota rigorosamente o mesmo estilo em ambos os registros: intermináveis planos-sequência no encalço dos personagens; rodas de conversa em que o diretor se faz notar questionando os trabalhadores sobre seus sonhos, medos e impressões sobre a ocupação; um momento de lazer; e retratos em movimento e em branco e preto que apresentam individualmente cada homem encarando (ou não) a câmera.
Impactante pelo contraste do p&b granulado 16 mm intercalado nas imagens coloridas do dia a dia, a estratégia é fundamental para a possibilidade de identificação por parte do público, que fora isso só vê os mineiros de costas, em grupo ou no breu – no caso da Sérvia. O uso do som ambiente das minas como acompanhamento dos retratos, que têm duração variável, é outra inteligente decisão do cineasta que estabelece unidade.
Entre os dois cenários, no entanto, as diferenças não poderiam ser mais gritantes. Os caucasianos sérvios ficam confinados no subsolo, estão há décadas nisso, procuram cobre e têm uma grande estrutura de apoio; ao passo que os latino-americanos são jovens negros em busca de ouro na superfície, sem uniforme ou equipamento de proteção. Eles usam máquinas rudimentares na mina independente e adotam todo um ritual místico de regras para atuação na natureza. Extração seria uma boa palavra para a mina sérvia e os rapazes do Suriname praticam mais numa caçada ao tesouro. É curioso, porém, como as conversas de homens tão distantes rendem declarações e expõem preocupações semelhantes.
Russel começa o filme sugerindo um som não-diegético para em seguida pregar uma enorme peça no espectador, explicitando logo de início sua intenção de ser tão verdadeiro quanto possível numa relação intermediada por câmera, montagem e projeção, passando ao largo das manipulações que o cinema possibilita. A iluminação nos túneis sérvios é na base das luzes dos capacetes, o que dá às intrigrantes sequências um desafio de adivinhação, pois só é possível compreender o que eles estão fazendo a partir da movimentação feita com steadycam ou da aproximação de mais pessoas (e suas lâmpadas).
Nos profundos tuneis de pedras o cineasta se empenha na composição das sombras, enquanto sob o implacável sol surinamês brilham os corpos pretos (sempre irresistíveis às câmeras dos brancos) definidos pela labuta pesada. Metal por metal, carne por carne, são homens iguais na sorte que aceitaram e na invisibilidade. Para variar, é bom ver como funcionam minas e não terminar a visita com soterramento.
Filme visto no 7º Olhar de Cinema, em junho de 2018.