De onde te vejo
por Taiani MendesDiariamente cruzamos com pessoas que nunca antes vimos e provavelmente jamais voltaremos a ver pelas ruas, vagões de metrô, ônibus, elevadores, restaurantes, supermercados, etc. Não raro interpretamos gestos de tais desconhecidos, montamos personalidades a partir de fragmentos de diálogos, imaginamos suas rotinas.
Hannah, de Andrea Pallaoro, vai fundo no cinema observacional colocando o público no papel de “espião” da rotina da personagem-título (Charlotte Rampling, premiada no Festival de Veneza), mulher na terceira idade que vive com o marido e um cachorro, extravasa em aulas de teatro, trabalha como empregada doméstica e ocasionalmente nada na piscina do clube.
A primeira cena mostra a personagem num exercício dramático que faz as veias de seu rosto saltarem e isso é o máximo de emoção que ela demonstra por bastante tempo. A intimidade do plano, a ausência de outros focos de atenção e o tempo dedicado ao rosto de Rampling indicam que as cortinas estão sendo abertas para um tour de force, mas a potência do drama não se restringe à performance segura da aclamada atriz.
O diretor Pallaoro, meticuloso em cada composição, realiza a façanha de contar uma história sem narrar explicitamente nada à maneira clássica. O roteiro ideal de Hannah só apresenta ações e nenhuma delas tem aquela conhecida função de contextualizar o público. A compreensão dos eventos que se sucedem entre elipses na vida da protagonista dependem, portanto, de ligações de pontos não tão óbvios, presunção e leitura de expressão não-verbal. Sozinha durante a maior parte do tempo, a personagem não tem interlocutor e vai guardando dores e escondendo incômodos enquanto se adapta a uma situação bastante estressante que não chega a ser explicada ao espectador, que vai recebendo cada novidade dessa mulher como uma onda desestabilizadora.
Hannah circula basicamente de metrô – o transporte oficial do anonimato, pela grande circulação e rotatividade –, onde sua atenção sempre se prende a algum companheiro de vagão (ou é ela a observada), colocando dentro do filme a relação de olhar/ser olhado e ter acesso apenas à parte da vida de uma pessoa.
Inicialmente registrada nos cantos, ela ganha o centro do enquadramento conforme o tempo passa e algumas coisas vão ficando claras, os sentimentos não tão controlados, o isolamento mais duro. As informações, no entanto, não são oferecidas facilmente. Quem é essa vaidosa e refinada empregada doméstica que os outros chamam de Hannah? O que aconteceu com sua família? O que não foi nem é mostrado? Você é capaz de ler seus sinais? Como se conhece de fato alguém?
Não são segredos, mas os não ditos que dão a Hannah enorme carga dramática e o colocam em posição de destaque entre os títulos lançados no Brasil até então e no dito cinema de personagem. Andrea Pallaoro dá ao espectador lugar privilegiado para acompanhar essa mulher enigmática, impossibilitada de falar sobre seus problemas, e é preciso no tanto que oculta e no silêncio em que confina sua solitária protagonista, exagerando, por outro lado, em sons diegéticos. Os passos introvertidos de sua longa descida ao inferno são ensurdecedores e suspeitar é viver.