Inútil paisagem
por Bruno Carmelo“Mas pra quê / Pra que tanto céu / Pra que tanto mar / Pra quê? / De que serve esta onda que quebra e o vento da tarde / De que serve a tarde / Inútil paisagem”. As letras de "Inútil Paisagem", canção escrita por Tom Jobim, contribuem a pensar sobre À Deriva, filme alemão dirigido por Helena Wittmann. A maior parte das imagens se concentra em movimentos da natureza: a nevasca caindo na rua durante a noite, a grama balançando ao vento forte, a lua caindo lentamente no céu, a espuma do mar se locomovendo, e principalmente as ondas fortes do mar, subindo e descendo.
Trata-se de movimentos constantes, repetitivos, porém sem um destino preciso – em outras palavras, são ações sem conflito. O projeto reproduz esta dinâmica: a partir da premissa microscópica de duas namoradas se separando após o passeio num barco em alto mar, a cineasta transmite uma sensação de estagnação, ou talvez de impotência. A vida está mudando bruscamente para ambas, embora elas não tenham controle das transformações. As personagens anônimas interpretadas por Theresa George e Josefina Gill são como as folhas ao vento, ou as espumas carregadas sobre a areia.
Chega então uma longuíssima cena de 20 minutos de duração, na qual vemos apenas as violentas ondas do mar. Wittmann registra estes momentos com elegante plasticidade e boa variedade de linguagem cinematográfica: os planos mudam – ora fixos, ora oscilando junto das ondas -, o tratamento sonoro varia entre o som direto do mar e do vento, a substituição destes por uma trilha eletrônica distorcida ou ainda a sobreposição do ruído à música. As imagens nunca são as mesmas, embora, no fundo, sejam sempre apenas ondas. A cena é difícil de assistir, provocando cansaço, sensação de aleatoriedade e falta de rumo.
A impressão nasce da escolha de não apenas representar uma personagem à deriva, mas também fornecer ao espectador a experiência de se encontrar em meio às águas. “À deriva” estamos todos nós, espectadores incluídos. Existe algo ao mesmo tempo provocador e ingênuo na literalidade desta brincadeira que consiste em tratar o tédio de modo entediante. Ao invés de usar elipses, metáforas, o filme opta pela simulação do tempo real. Muitos filmes independentes ainda encontram na ausência de conflito e na dilatação temporal a principal forma de resistência ao cinema escapista, narrativo. À Deriva constitui o avesso da arte como entretenimento.
Resta portanto uma provocação, sem dúvida, mas jamais vazia ou desprovida de interesse estético. Wittmann faz uso refinado da montagem, dos enquadramentos, dos sons – vide a esplêndida cena final, quando brinca com os quadros dentro do quadro, com a representação da natureza dentro de um espaço urbano, e também com as noções de proximidade e distância. Apesar do casal de mulheres e dos raros diálogos sobre a origem mística do universo, o personagem principal é a própria imagem, a exploração do tempo e espaço, a função representativa da imagem fotográfica. O resultado consegue unir o prazer cerebral, conceitual, com o deleite estético, resultando em algo hermético demais para o público amplo, porém de valor único para o olhar cinéfilo.
Filme visto no 18º Festival Indie, em setembro de 2018.