Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
À Deriva

Inútil paisagem

por Bruno Carmelo

“Mas pra quê / Pra que tanto céu / Pra que tanto mar / Pra quê? / De que serve esta onda que quebra e o vento da tarde / De que serve a tarde / Inútil paisagem”. As letras de "Inútil Paisagem", canção escrita por Tom Jobim, contribuem a pensar sobre À Deriva, filme alemão dirigido por Helena Wittmann. A maior parte das imagens se concentra em movimentos da natureza: a nevasca caindo na rua durante a noite, a grama balançando ao vento forte, a lua caindo lentamente no céu, a espuma do mar se locomovendo, e principalmente as ondas fortes do mar, subindo e descendo.

Trata-se de movimentos constantes, repetitivos, porém sem um destino preciso – em outras palavras, são ações sem conflito. O projeto reproduz esta dinâmica: a partir da premissa microscópica de duas namoradas se separando após o passeio num barco em alto mar, a cineasta transmite uma sensação de estagnação, ou talvez de impotência. A vida está mudando bruscamente para ambas, embora elas não tenham controle das transformações. As personagens anônimas interpretadas por Theresa GeorgeJosefina Gill são como as folhas ao vento, ou as espumas carregadas sobre a areia.

Chega então uma longuíssima cena de 20 minutos de duração, na qual vemos apenas as violentas ondas do mar. Wittmann registra estes momentos com elegante plasticidade e boa variedade de linguagem cinematográfica: os planos mudam – ora fixos, ora oscilando junto das ondas -, o tratamento sonoro varia entre o som direto do mar e do vento, a substituição destes por uma trilha eletrônica distorcida ou ainda a sobreposição do ruído à música. As imagens nunca são as mesmas, embora, no fundo, sejam sempre apenas ondas. A cena é difícil de assistir, provocando cansaço, sensação de aleatoriedade e falta de rumo.

A impressão nasce da escolha de não apenas representar uma personagem à deriva, mas também fornecer ao espectador a experiência de se encontrar em meio às águas. “À deriva” estamos todos nós, espectadores incluídos. Existe algo ao mesmo tempo provocador e ingênuo na literalidade desta brincadeira que consiste em tratar o tédio de modo entediante. Ao invés de usar elipses, metáforas, o filme opta pela simulação do tempo real. Muitos filmes independentes ainda encontram na ausência de conflito e na dilatação temporal a principal forma de resistência ao cinema escapista, narrativo. À Deriva constitui o avesso da arte como entretenimento.

Resta portanto uma provocação, sem dúvida, mas jamais vazia ou desprovida de interesse estético. Wittmann faz uso refinado da montagem, dos enquadramentos, dos sons – vide a esplêndida cena final, quando brinca com os quadros dentro do quadro, com a representação da natureza dentro de um espaço urbano, e também com as noções de proximidade e distância. Apesar do casal de mulheres e dos raros diálogos sobre a origem mística do universo, o personagem principal é a própria imagem, a exploração do tempo e espaço, a função representativa da imagem fotográfica. O resultado consegue unir o prazer cerebral, conceitual, com o deleite estético, resultando em algo hermético demais para o público amplo, porém de valor único para o olhar cinéfilo.

Filme visto no 18º Festival Indie, em setembro de 2018.