Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
O Motorista de Táxi

A fábula do homem alienado

por Bruno Carmelo

O protagonista dessa história, Man-seob (Song Kang-ho), representa a figura mítica do “pobre de direita”. Ele sofre com graves dificuldades financeiras desde que perdeu a esposa, e mal consegue arcar com as despesas da filha pequena. Mesmo assim, quando vê estudantes universitários nas ruas lutando por direitos e protestando contra a ditadura militar na Coreia do Sul, chama-os de “vagabundos”, grita para voltarem a estudar ao invés de fazeres arruaça e atrapalharem o trânsito. Afinal, o país não pode estar tão mal assim, certo? Tem outros muito piores por aí, no Oriente Médio, por exemplo…

O Motorista de Táxi se constrói como uma fábula de perda da inocência e descoberta da consciência política. Quando o taxista, por malandragem, rouba o passageiro de um colega e o leva à cidade de Gwangju, ele mal sabe que esta região constitui o epicentro dos confrontos armados no país. Aos poucos, descobre a opressão dos militares, que censuram a mídia, cortam as linhas de telefone, bloqueiam as vias. Depois, presencia o massacre, a perseguição, as inúmeras violações de direitos humanos. Por acaso, e de modo traumático, este antigo soldado conhece pela primeira vez o senso de coletividade.

Se fosse feito em Hollywood, o filme transformaria Man-seob num líder da revolução contra o governo, um homem de valores inquestionáveis na luta contra os perversos governantes. É uma grata surpresa ver que o diretor Hun Jang atenua o maniqueísmo: até a conclusão, o protagonista permanece confuso quanto às causas do conflito, mas se posiciona contra o massacre sanguinário dos homens no poder. Ele pensa em desistir várias vezes do trajeto, mas as circunstâncias o levam a ficar. O heróico jornalista alemão (Thomas Kretschmann) que pretende retratar a história e transmiti-la ao mundo inteiro também se revela mais frágil do que parecia inicialmente. Mesmo os soldados ganham nuances: apesar da liderança tirânica, alguns membros da corporação secretamente discordam das ordens que recebem. Aos poucos, o roteiro aprofunda a complexidade humana e psicológica.

É óbvio que, como fábula, a trama recorre a momentos simplificados e tiradas improváveis de humor para aliviar a dor das mortes, ou ainda a ferramentas convencionais como a trilha sonora grandiosa de ou a fotografia com névoa avermelhada durante os tiros. Existe real preocupação em tornar a história palatável ao público médio, o verdadeiro alvo da produção. O Motorista de Táxi não esconde seu discurso progressista destinado a pessoas alienadas como Man-seob, que poderiam eventualmente se identificar com o taxista e questionar a liderança de seu próprio país. Poucas obras conseguem agenciar tão bem o entretenimento e a política.

O improvável feel good movie sobre a ditadura se beneficia da excelente atuação de Song Kang-ho, astro coreano muito confortável tanto no drama quanto na comédia. Em meio a alguns excessos e passagens questionáveis - especialmente na conclusão, mais melodramática que o resto - traz um lembrete importante sobre os absurdos da História que nenhum país - nem a Coreia, nem o Brasil - deveria repetir.