Ecos da ditadura
por Francisco RussoIndependente de opiniões políticas, fato é que Cuba é um ícone mundial. Berço da revolução socialista comandada por Fidel Castro em 1959, a ilha caribenha logo se tornou uma espécie de sonho idílico para os esquerdistas, pela possibilidade concreta de empregar seus ideais como forma de governo aliado ao espírito alegre e cooperativo da população. Se no campo ideológico sua posição sempre foi muito bem estabelecida, o lado obscuro ficou por conta dos abusos cometidos por este mesmo governo, típicos de uma ditadura longeva. É neste ambiente espinhoso que se aventura o diretor Carlos Lechuga em seu novo filme, Santa e Andrés, onde com extrema habilidade consegue ser político sem ser panfletário.
Situado em 1983, o longa acompanha uma situação um tanto quanto surreal: um homem, que vive isolado, recebe a visita de uma mulher que recebeu a tarefa de vigiá-lo durante três dias. Presente na lista negra do governo devido a um livro há muito escrito, Andrés não deve chegar nem perto do hotel onde acontece o Fórum para a Paz, de forma a revelar aos jornalistas estrangeiros a perseguição que ele e amigos sofreram - e sofrem. Só que a tal vigília é no melhor estilo cubano de ser, com sua notória limitação de recursos: uma mera cadeira, carregada pela própria mulher, que permite que se posicione diante da casa. Mais ainda: acontece apenas durante o dia, deixando a noite livre para que ele faça o que bem entender. Ou seja, há uma imensa abertura de que todo o esforço feito até então seja em vão.
Ainda assim, tal situação de imediato estabelece um confronto político: ela, revolucionária ferrenha; ele, o encarcerado ressabiado. Mais do que ideais políticos de esquerda ou direita, está ali representado o clássico jogo da opressão derivada do poder imposto, onde um manda - ou patrulha - o outro. Tamanha rigidez é aos poucos quebrada a partir de uma arma poderosa: a humanidade. Nasce então a aproximação, que resulta na revelação de mágoas do passado que moldaram ambos.
De forma bastante sutil e com uma fotografia voyeur, que busca capturar não só o ambiente físico mas também o emocional de seus personagens-título, Lechuga desenvolve uma sensível história de dor, onde opiniões partidárias ficam em segundo plano por mais que a história retratada seja profundamente política. Para tanto, conta ainda com o auxílio luxuoso de seus protagonistas, Lola Amores e, especialmente, Eduardo Martinez, que tanto revela através do olhar e da postura corporal. Vale ainda ressaltar a bela caracterização de Cesar Domínguez, intérprete do mudo, que traz consigo um forte subtexto envolvendo o machismo existente nesta sociedade.
Dentro deste contexto, o grande revés de Santa e Andrés é justamente uma reviravolta um tanto quanto brusca em torno da protagonista feminina, o que soa bastante inverossímil - não pelo que acontece, mas pela rapidez da mudança. Uma cena gratuita de nudez (dela) e uma sequência esquemática onde ambos lidam com o passado são excessos que poderiam ter sido limados. Mas nada disto diminui a força desta denúncia perante a opressão, que por acaso acontece em um país mundialmente conhecido como um ícone esquerdista mas que, na verdade, se repete em qualquer lugar onde haja uma ditadura. Um belo filme, que ganha ainda mais força por ser uma história cubana contada por um cubano, ou seja, por alguém que tem a necessária vivência para trazer tal realidade de forma tão fidedigna.
Filme visto no 27º Cine Ceará, em agosto de 2017.