A planta de Tchekov
por Renato FurtadoNa teoria narrativa, há um conceito que diz respeito à necessidade de um dado elemento na trama. De acordo com este princípio, conhecido como "arma de Tchekov", batizado após o autor russo de mesmo nome, tudo que não seja vital à estrutura narrativa, deve ser retirado. A aplicação mais comum e clássica desta ideia gira justamente em torno de armas de fogo: se virmos um revólver sobre uma mesa, por exemplo, isso quer dizer que ele será disparado em algum momento. Uma Nova Chance, comédia dramática que traz o retorno de Jennifer Lopez, demonstra ter ciência das convenções narrativas.
Aqui, no entanto, a arma é uma planta e todos os passos da "receita de bolo" dos roteiros cinematográficos são seguidos tão à risca, mas tão à risca, que é praticamente possível ouvir as engrenagens girando por trás dos claros esforços do elenco liderado por Lopez. Nas mãos do diretor Peter Segal (Agente 86), esta variação ao esquema da mulher que objetiva encontrar sua independência — Maya (Lopes), que sequer se formou no ensino médio, luta contra os preconceitos de uma sociedade corporativa focada nas qualificações acadêmicas dos indivíduos —, destaca-se por seu claro e enfadonho desejo em agradar.
Uma Nova Chance é como o cosmético que Zoe (Vanessa Hudgens), rival de Maya na companhia de produtos dermatológicos na qual consegue um emprego de alta patente através de um currículo falso, construído por seu afilhado, desenvolve. Na propaganda, o item é orgânico, trazendo apenas insumos naturais em sua composição — em teoria, é claro. Basta ler o verso da embalagem, entretanto, para perceber que o esforço para alcançar a naturalidade é infrutífero: no cerne de ambos, tanto do cosmético quanto do longa, há uma vasta quantidade de químicos, ou de maquinações narrativas, nesta analogia.
A trilha sonora, óbvia e presente durante toda a projeção, opera como muleta, nos informando cada uma das emoções que devemos sentir a cada passo da trama, como se a própria Lopez e a "jornada da heroína" pela qual sua personagem atravessa não fossem cativantes o bastante. A estrutura clássica do arco de desenvolvimento de um dado personagem foi desenhada para que não houvessem falhas: há a apresentação, um evento que complica as coisas, a dura batalha pela qual o herói precisa passar, o ganho de conhecimento, uma derrota aparentemente irreversível e, por fim, o triunfo.
A despeito da cartilha seguida, contudo, Uma Nova Chance não funciona, e muito por causa de uma inesperada reviravolta que só amplia a sensação de implausibilidade da trama como um todo. Uma comédia dramática como esta não precisa ser social e culturalmente realista e nem mesmo crítica: isto é Hollywood, no fim das contas. Todavia, o filme não só perde a chance de tecer um comentário reflexivo, mesmo que simples, acerca da distância que separa a virtualidade da realidade em nossos tempos de redes sociais, como também erra a mão, transformando-se em um melodrama inacreditável.
Impressiona, enfim, a manipulação empreendida por Segal, que jamais parece confiar no carisma de Lopez, uma estrela certificada deste tipo de produção há 20 anos. Outra atriz que é mal aproveitada no processo é Leah Rimini, do seriado The King of Queens, o alívio cômico desta obra: quando ela surge em cena, sempre como o contraponto humorístico à seriedade da personagem de Lopez, o filme ganha mais uma camada de relevância, distraindo-nos de suas aparentes falhas. Quando não, somos deixados com a fragilidade da composição de uma mulher cuja busca por independência é constantemente minada.
Ao mesmo tempo em que procura celebrar Maya, Uma Nova Chance também atrasa sua evolução tridimensional, compondo um discurso perigoso e ultrapassado na era em que figuras femininas de todo o mundo questionam os papéis que as sociedades sempre lhe impuseram, sendo o de mãe/"cuidadora" o mais presente nesta trama. Além disso, certos eventos são tão inverossímeis que esta dramédia habitaria melhor o território da ficção científica, onde é possível chutar o pau da barraca do realismo sem maiores consequências. Uma Nova Chance deveria ser agradável, para dizer o mínimo. Mas não é.