Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Um Pequeno Favor

Me engana que eu gosto

por Bruno Carmelo

Stephanie (Anna Kendrick) e Emily (Blake Lively) são apresentadas como duas mulheres opostas. A primeira é tímida, um tanto infantil, esforçando-se demais para ser apreciada pelos outros. As roupas com estampas floridas em tons pastéis transparecem uma imagem de decência e castidade. Já a segunda é forte, imprevisível, ao mesmo tempo grosseira e elegante. Definida como mulher de intenso apetite sexual, ela controla o marido e veste roupas normalmente associadas aos padrões masculinos, como ternos e camisas. Stephanie sorri por desespero, e Emily, por malícia. A ingênua fica fascinada com a vida libertária da colega que, por sua vez, enxerga na vlogueira amadora um passatempo interessante.

Um dia, Emily some. De acordo com o marido Sean (Henry Golding), não é a primeira vez que ela faz isso. Devemos ficar preocupados? Na primeira metade, Um Pequeno Favor investe num suspense tradicional, porém bastante eficaz. Existem motivos suficientes para acreditar num crime ou numa brincadeira, e o trio de personagens demonstra atitudes ambíguas o suficiente para satisfazerem mais de uma hipótese. O espectador pode esperar pela revelação dos fatos e a resolução do conflito, que à primeira vista guarda semelhanças surpreendentes com Garota Exemplar, de David Fincher. No entanto, o diretor Paul Feig e a roteirista Jessica Sharzer, apoiados no livro de Darcey Bell, investem em rumos bem diferentes. A revelação sobre o caso é apenas uma entre uma dúzia de surpresas que aparecem pelo caminho.

A narrativa se transforma num jogo de surpresas, sucedendo-se em velocidade cada vez mais rápida. Abandonamos o suspense - compreendido como jogo de pistas que convida o espectador à adivinhação - para adentrarmos a farsa. De repente, os indícios não chegam mais: testemunhamos apenas as mudanças imprevisíveis, não anunciadas, nem encaminhadas. Hitchcock dizia que o suspense dependia de uma assimetria de informações - ou o espectador sabe de algo que os personagens não sabem, ou um personagem sabe de algo que o outro não sabe, e nós presenciamos o segredo. Neste caso, todos os personagens sabem muito mais do que os espectadores, que assistem passivos à montanha-russa de revelações. Não temos como suspeitar de nenhum desses caminhos, pois não recebemos indicações para tal.

É claro que, quanto mais mudanças surgem na trama, menos sentido ela passa a ter. Os investigadores mais assíduos não terão dificuldades para encontrar furos e passagens absurdas na história. Pelo menos, Um Pequeno Favor jamais se leva a sério, seja pela atuação das protagonistas, ambas desenvoltas na comédia sarcástica, seja pelo tom pacífico da direção, que filma mortes como se estivesse retratando o dia a dia numa casa de subúrbio qualquer. A banalidade do crime é o que mais aproxima este projeto de uma boa comédia, ou pelo menos de um projeto singular dentro do circuito comercial. O filme funciona como uma narrativa adulta, no sentido de não precisar recorrer ao espetáculo ou à simplificação de seus personagens para funcionar. O roteiro combina a iminência da morte com o forte teor sexual e a possibilidade de loucura, como nos melhores thrillers psicológicos.

O resultado também ajuda a lembrar que toda forma de cinema constitui, em sua essência, uma manipulação. Cada história é contada a partir de um ponto de vista, cada narrativa escolhe incluir certos elementos em detrimento de outros, e todo enquadramento implica uma seleção do olhar, e portanto uma exclusão de parte do real. O suspense tragicômico de Paul Feig escancara este acordo tácito entre artista e público, lembrando-nos que estamos no cinema para isso mesmo: nós gostamos de ser manipulados. No final, pouco importa quem está enganando quem dentro daquela história: o verdadeiro enganado é o espectador, soterrado por uma avalanche de bifurcações e atalhos. Assumindo-se como labirinto, Um Pequeno Favor encontra um propósito no prazer de se perder.