Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Todo Dia

O amor não vê aparências

por Bruno Carmelo

Julgando pelos rostos sorridentes do cartaz brasileiro, ou pelo beijo apaixonado no pôster internacional, este drama/romance parece não se diferenciar muito da maioria das produções adolescentes do gênero. Assim como A Culpa é das Estrelas, Tudo e Todas as CoisasSe Eu Ficar e Antes que Eu Vá, o filme flerta com a mortalidade e a finitude (afinal, o grande amor da protagonista pode desaparecer a qualquer momento), e com a ideia de repetições inevitáveis, como transformações ironicamente necessárias para manter as coisas exatamente do jeito que estão. É preciso superar a morte, o tempo e o anonimato para viver um grande amor. A nova oferta de romance para adolescentes combina fatalismo e heroísmo.

Mesmo assim, a premissa específica de Todo Dia se revela bastante original. Um dia, Rihannon (Angourie Rice) conhece uma entidade que acorda a cada dia no corpo de uma pessoa nova. Ele/ela não controla o fenômeno, que ocorre desde o nascimento. Seria errado dizer que este personagem incorpóreo adquire uma nova aparência: ele literalmente vive a vida de outra pessoa, cujas feições são descobertas no momento em que acorda. Curiosamente, A sempre vive numa família de classe média-alta, no meio-oeste americano, o que pode parecer pouco verossímil dentro deste potencial de transmutação, mas passemos.

O roteiro se serve da ficção científica para testar os limites do amor impossível, sem demonstrar interesse em desenvolver as causas ou consequências deste fenômeno sobrenatural: A é assim, e aparentemente o único no planeta. Ele não se oferece à ciência, nem compartilha a sua sina com ninguém. A ideia é torná-lo mais próximo da figura de um adolescente qualquer, sentindo-se mal em seu próprio corpo, inadequado nas investidas amorosas, incompreendido pelos pais e pela sociedade.

A paixão de Rihannon por um indivíduo que acorda cada dia num corpo diferente poderia representar uma singela metáfora da transexualidade. Afinal, a garota está apaixonada pela personalidade constante e atenciosa, mesmo que um dia ela corresponda à imagem de um belo garoto musculoso, no outro um asiático obeso, ou ainda uma latina de cabelos cacheados. A ideia de que o corpo não necessariamente reflete a identidade, e de o amor é maior do que a aparência serviria de belo discurso sobre a pluralidade de gênero, até se perceber que a aleatoriedade dos corpos contrasta em muito com a realidade trans: seria equivocado sugerir que indivíduos transexuais “não se importam” com seus corpos, como ocorre com A nesta trama. Além disso, Todo Dia permite beijinhos castos entre meninas, mas os dias de romance profundo só ocorrem com garotos belos e musculosos. A história indica certa abertura à diversidade, mas não vai muito longe.

No que diz respeito à estética, o diretor Michael Sucsy segue à risca os tiques do romance adolescente indie norte-americano, com rock melódico na trilha sonora, belas paisagens para as cenas de amor, enquadramentos apenas funcionais nos corpos e rostos. Reforça-se o valor das viagens à natureza, dos carros como sinal de independência, além da obsessão pelos telefones celulares (o filme constitui praticamente uma propaganda da Siri). Os personagens coadjuvantes não ganham aprofundamento – pobres Maria BelloMichael Cram -, limitando-se a orbitar o romance central, como as figuras de um livro de John Green. Cada figura é descrita por um trauma único, mas jamais possui opiniões e uma personalidade bem desenvolvidas. Nem mesmo as atuações se destacam, apostando no dolorismo um grau acima da realidade.

Apesar da embalagem enxuta, e de um encaminhamento de certo modo previsível, Todo Dia consegue romper com o conservadorismo vigente na maior parte das produções teen, apontando para uma discreta ruptura com os códigos sexuais, de gênero e de identidade de modo geral. Ainda falta muito para chegarmos a um romance de apelo comercial realmente subversivo – nem Com Amor, Simon, dotado de uma temática gay, conseguia sugerir o desejo sexual sem chocar as plateias americanas -, mas já constitui um passo considerável.