Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Triângulo da Tristeza

O luxo e o lixo de mãos dadas

por Aline Pereira

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2022Triangle of Sadness surpreendeu em várias frentes: dos recursos visuais escatológicos que fariam inveja às cenas perturbadoras de Crimes of the Future, também presente na competição, à empolgação que gerou nas salas de cinema. Com uma crítica direta ao ponto e cheia de ironias à alta sociedade, o longa do cineasta sueco Ruben Östlund (que agora é bicampeão em Cannes) aponta o óbvio, mas faz isso com tanto carisma que causa impacto e se divide com precisão entre entretenimento e repulsa.

Triangle of Sadness começa quando Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean), um casal de modelos, é convidado para um cruzeiro de luxo, a bordo de um iate repleto de bilionários - é como se os personagens mais detestáveis de Succession e de The White Lotus se reunissem no mesmo lugar. Mas quando o barco naufraga, uma inversão de hierarquia acontece: nenhum dos passageiros têm ideia de como sobreviver por conta própria e a única pessoa que sabe como cuidar de si mesma é uma das funcionárias do cruzeiro. O filme, então, se debruça sobre essa virada de poder nas relações e na nova ordem que se estabelece a partir daí.

Do luxo ao lixo: Triangle of Sadness choca com humanidade

Assim que dá ao espectador um vislumbre de uma vida bilionária inacessível para quase todos - dos costumes peculiares aos pequenos e luxuosos pratos de comida, a trama dá a volta e arranca essa máscara de aparências com brutalidade. Em um dos vários percalços caóticos do iate, os passageiros são forçados a confrontar a própria humanidade da forma mais crua possível - e quando as condições são extremas, não existe poder capaz de nos blindar de nossa própria natureza.

O longa aposta suas fichas no sentimento geral de satisfação ao ver pessoas privilegiadas demais perderem as vantagens que as colocam no topo do mundo - especialmente quando elas negam ou sequer têm consciência de seu lugar. Nesse sentido, Triangle of Sadness (e sua avalanche de aplausos comprova) serve um banquete generoso ao eliminar privilégios para mostrar que, sem eles, quase nada sobra. Sem ter quem servi-los, a elite do filme se mostra incapaz de realizar as tarefas mais básicas para cuidar da própria vida. Não há novidade alguma nesses conceitos, mas a sátira entretém tanto que não se esgota - e diverte evocando uma certa sensação de justiça.

A sociedade sempre se remonta

A construção mais interessante do filme é a da “nova” sociedade após o naufrágio. A camareira, única pessoa capaz de suprir comida e abrigo, sai do posto de empregada para a posição de líder: pela primeira vez, tudo o que ela produz pertence a ela, para distribuir da forma que quiser. É quando entra em cena uma reorganização fascinante: naquele novo pequeno mundo, o trabalho que a camareira sempre fez ganha valor e todos percebem que precisam dela. É ela a verdadeira fonte da sobrevivência de todos e a base que sustenta a sociedade inteira. De novo: é impossível passar um recado mais claro. Não há sequer espaço para encontrar outra interpretação.

Com essa reorganização, os bilionários tentam a todo custo recuperar a posição de poder que sempre tiveram, mas agora sem recurso algum: a coleção de relógios Rolex que um deles possui não vale nada quando não se tem o que comer. O peixe na mesa é o que há de mais valioso - e aí vem o próximo ponto que gerou aplausos nas primeiras sessões do filme em Cannes.

A camareira não é ingênua, tem plena consciência do valor da sua mão-de-obra e não hesita em encontrar maneiras de reverter a situação a seu favor. Interpretada brilhantemente pela atriz filipina Dolly de Leon, Abigail representa não só a classe trabalhadora, mas também ilustra a posição feminina no meio profissional. Tendo uma mulher na liderança, os homens são submetidos a um sexismo que nunca haviam chegado nem perto de presenciar e não têm ideia de como reagir, presos a situações em que se veem forçados a dizer “sim”. Aqui, Triangle também aposta na satisfação da revanche. 

O mundo dos “quase ricos”

Yaya e Carl, o casal de modelos, são um show à parte e a dupla de atores têm a dinâmica que dá alma ao filme: eles não estão nem perto de ser parte do universo dos bilionários, mas a beleza padrão garante a eles um lugar de destaque na sociedade. Os dois protagonizam a cena de abertura em que Carl reclama de a namorada nunca dividir a conta no restaurante, fazendo um discurso batido e superficial (e hilário) sobre igualdade e empoderamento. A questão é que a reflexão dele para por aí e Carl não faz ideia dos outros tantos fatores que significariam, de verdade, a equidade que ele acha que está resumida uma conta de restaurante.

Enquanto isso, Yaya, além de modelo, é influenciadora digital, obcecada em fotografar e postar todos os momentos - incluindo pratos de comida que ela não come. E aqui, Carl é a pessoa que vai apontar a superficialidade de tudo isso, enquanto se aproveita do luxo no cruzeiro que Yaya ganhou justamente por ser influenciadora. Uma dinâmica afiada que leva a vários outros conflitos entre dois e não exige que tomemos o lado de ninguém. 

Entre todas as críticas claras à sociedade capitalista, Triangle of Sadness acerta também ao dar espaço àqueles que são mão-de-obra, mas, por receberem uma pequeníssima quantidade de poder, tem dificuldade em “se situar” na cadeia social. Uma menção aqui também para Woody Harrelson (Jogos Vorazes) em um de seus melhores momentos da carreira como o capitão de um barco que está afundando e que tem momentos surpreendentes (mas não vamos dar nenhum spoiler).

Ao misturar todas essas figuras em uma situação extrema, o longa leva o público pelas mãos para passear pela realidade mais cruel e mais honesta das relações de poder, dinheiro e influência. Essa objetividade é, sem dúvidas, um fator que prejudica histórias que pretendem trabalhar com conceitos mais subjetivos ou abstratos, mas não é o caso aqui: à esta altura do campeonato, as características do sistema em que vivemos são mais do que claras e Triangle of Sadness parece ter o escracho como sua grande arma para manter a discussão girando.