A festa é minha, eu faço o que eu quiser
por Bruno CarmeloQuando tinha oito anos de idade, a atriz e dançarina Andréa Bescond foi estuprada por um adulto amigo da família. Os abusos continuaram durante anos. Apenas na fase adulta, depois de um longo processo terapêutico, conseguiu revelar a verdade aos amigos e familiares. Em seguida, elaborou a aclamada peça Les Chatouilles, dirigida por Eric Métayer. Agora, a dupla se une na adaptação cinematográfica. O ponto de partida remete àquele de Eu, Mamãe e os Meninos (2013), no qual um ator também transformou seus traumas de infância em monólogo teatral, e depois em filme.
Bescond e Métayer apostaram que a linguagem teatral funcionaria também no cinema. Por isso, mantiveram o dispositivo cênico, com os cenários mudando dentro do enquadramento, a ideia de que cada ação precisa de um espaço único para se desenvolver, além do diálogo como motor de conflito. Para atenuar o peso dos relatos de estupro e pedofilia, incluíram uma série de piadas da protagonista, que fala sem complexos sobre seu vício em drogas, sua promiscuidade, seu fracasso no mundo da dança. Quando os flashbacks remetem à infância, o teor é grave. Na vida adulta, os cenários se tornam coloridos, enquanto bailarinos invadem os enquadramentos para dançar enquanto alguma atividade realista se desenvolve em primeiro plano – como num musical.
A representação imagética do abuso de uma criança era o maior desafio a enfrentar. Falar sobre o caso produz um efeito específico, mas tê-lo em imagens, com uma menina angelical e um adulto efetuando o ato, desperta uma reação (e toca em princípios éticos) totalmente diferentes. Os diretores tomaram a precaução de sempre enquadrar a criança e o adulto em imagens separadas, de modo que a garotinha provavelmente não compartilhou a mesma cena com o ator que representa o seu agressor. Mesmo permanecendo no terreno da ficção, assistir a quatro cenas de estupro infantil se revela um tanto difícil. Pierre Deladonchamps encarna o papel ingrato do “tio” pedófilo, e tenta fazê-lo com respeito.
Mas o show pertence unicamente a Andréa Bescond. Ela aparece em quase todas as cenas, é sempre ela que grita, que chora, que faz a piada, que fica em destaque durante as cenas de dança. Ela é o centro das atenções, numa composição histriônica, afetada – não será uma surpresa se for indicada aos próximos prêmios César. Ora, é compreensível que o ponto de vista do abuso pertença à vítima. No entanto, as raízes do crime só podem ser compreendidas quando se desenvolve a ignorância do pai (Clovis Cornillac), a vilania profunda da mãe (Karin Viard, descontrolada), o silêncio da esposa do agressor, a descrença das pessoas ao redor. Andréa sofreu durante tanto tempo sozinha porque a sociedade fechou os olhos, e essa indiferença precisava ser sentida em cena para a discussão ganhar uma amplitude social, e não representar apenas o desabafo a partir de um caso único.
Les Chatouilles (“As cócegas” no original, em referência à brincadeira proposta pelo estuprador) deseja tratar de um assunto seríssimo, mas tem medo de ofender, de não funcionar como entretenimento. Por isso, apela para uma montagem frenética e desordenada, para recursos lúdicos nunca explorados a fundo (a garota flutuando no palco) e evita a discussão quando se torna séria. Dois grandes momentos de confronto no terço final são curiosamente escondidos do público. A narrativa inteira serve de preparação para a hora em que Andréa terá palavras para falar. Então, quando fala, o som corta a sua voz e uma música agradável entra em cena. O filme se expressa de maneira poética pela dança e de maneira literal pelos flashbacks de abuso. Quando finalmente chegaria à conclusão de todos esses esforços, termina por se sabotar em algumas cenas surpreendentemente mal dirigidas, editadas e roteirizadas. Bascond e Métayer fazem da vítima uma protagonista, fazem do abuso o tema principal, mas não conseguem lidar com a superação do trauma.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.