"Um escritor que é gay"
por Bruno CarmeloPela falta de publicações em língua portuguesa, o americano Armistead Maupin é pouco conhecido no Brasil. Em seu país, no entanto, produziu uma literatura acessível e popular, introduzindo em crônicas elementos controversos para a sociedade dos anos 1970, como a homossexualidade, a transexualidade e a proliferação do HIV. O documentário da diretora Jennifer M. Kroot acompanha a trajetória deste homem enquanto foge aos principais clichês das cinebiografias.
Primeiro, a cineasta não está interessada no valor literário do trabalho de Maupin, e sim na maneira como as suas obras foram importantes para a representatividade LGBTTQ nos jornais diários - o autor começou escrevendo ficções curtas, antes de passar aos livros. A verdadeira qualidade do protagonista, para Kroot, se encontra na capacidade de retratar a transformação moral de uma época, ao mesmo tempo em que permaneceu bastante aberto à sua própria sexualidade. Mas Maupin não é um “escritor gay”, ele diz, e sim um “escritor que é gay”, sem que um fator necessariamente influencie o outro.
A cineasta entrevista pessoas influenciadas direta ou indiretamente pelos textos do escritor. A ótima montagem evita os elogios excessivos, a idealização do criador de personagens como Mary Ann Singleton e Anna Madrigal. O próprio Maupin, em depoimentos, diz muito mais sobre a sociedade americana de sua juventude do que sobre seus próprios trabalhos, expondo-se com uma franqueza rara. De certo modo, a edição costura estes elementos como se fossem um só: a infância do autor, seus primeiros trabalhos, a consagração, suas histórias de amor com outros homens.
Segundo, a ideia de linearidade, com os fatos desencadeando na inevitável ascensão de um homem talentoso, some neste projeto. A fama de Maupin não constitui uma “consequência óbvia” de seu talento, mas uma conjunção de fatores, de oportunidades. O filme volta para a infância três ou quatro vezes, sem uma temporalidade precisa. Kroot constrói a ideia de um bate-papo informal com o escritor, resgatando anedotas quando estas convêm ao locutor. Tamanha leveza afeta positivamente o resultado, que se torna agradável do início ao fim, tanto nas engraçadas histórias sexuais de Maupin quanto nos relatos comoventes de amigos vítimas da AIDS.
A aparência de leveza, aprofundada pela trilha sonora indie e pelas vinhetas animadas, tem seus pontos negativos. O principal deles é o desejo de passar rapidamente demais por aspectos polêmicos. O documentário demonstra condescendência com o pai racista, e também evita tomar partido quando o mesmo passa a revelar a homossexualidade de uma série de celebridades que não desejavam ter a suas vidas expostas. Talvez por influência de sua criação conservadora, o autor dispara frases como “Meus personagens não são brancos nem negros, eles são humanos”, o que elimina especificidades culturais e históricas evidentes de cada um desses grupos. Mas o filme jamais questiona estas posições, não as coloca em conflito nem toma distanciamento em relação às mesmas.
Apesar das ressalvas, As Histórias Não Contadas de Armistead Maupin efetua um retrato multifacetado de seu personagem, sem precisar transformá-lo num ícone virtuoso. O biografado tem a aparência de um homem comum, que brinca com o tamanho de sua barriga, passeia pelas ruas de mãos dadas com o namorado e se diverte na Parada Gay como centenas de homens e mulheres ao redor. Esta simplicidade faz dele uma figura de identificação fácil, universal, especialmente o público LGBTTQ que também precisa se ver representado nas telas.
Filme visto no 25º Festival Mix Brasil, em novembro de 2017.