A casa de bonecas
por Bruno CarmeloPor mais britânico que seja, existe algo em The Souvenir que lembra os primeiros dramas de Woody Allen. A paixão pelos diálogos como motor narrativo, a crise de uma pessoa rica lamentando sua vida vazia, as relações amorosas intermitentes, um gosto pelo patético e pela autocrítica dão o tom tanto de obras como Interiores quanto desta nova produção dirigida por Joanna Hogg. Julie (Honor Swinton-Byrne) mora num apartamento que mais parece um palácio. Ela estuda cinema, e recebe da mãe o dinheiro necessário para seus estudos. Mesmo assim, parece entediada.
É tentador rejeitar o filme por sua dedicação a tantos white people problems, ou seja, problemas de pessoas brancas, ricas, heterossexuais, que podem se preocupar apenas consigo mesmas. Não surpreende que quase toda a narrativa se passe dentro dos luxuosos apartamentos, visto que não existe mundo lá fora. O universo do filme se resume ao existencialismo de Julie. Mesmo assim, a diretora faz questão de sublinhar este traço, tornando-o exagerado, autocondescendente. Em outras palavras, a protagonista possui consciência de sua posição burguesa, o que de certo modo busca redimi-la do egocentrismo desta trajetória de autodescoberta.
A direção combina carinho e sarcasmo: é terna a maneira como Julie trata o melhor amigo, que mora em sua casa sem prestar qualquer tipo de contribuição, enquanto chega a ser absurdo que ela aceite tantos comentários depreciativos do namorado Anthony (Tom Burke), um homem mais velho, sagaz e pronto para diminui-la por suas ambições cinematográficas. Como de costume nessas produções, multiplicam-se os diálogos filosóficos sobre a natureza do real versus as possibilidades da representação, a vida como essência versus a vida como experiência etc. As interações de The Souvenir podem soar pedantes – estas longas conversas ocorrem à mesa, dentro de palacetes luxuosos – mas a direção os enxerga como pequenos prazeres, quase uma traquinagem de Julie.
Talvez este seja o real incômodo do filme: o fato de filmar uma situação dramática (o relacionamento abusivo, a dependência de drogas, o bloqueio criativo) como se fosse uma comédia dramática, uma farsa entre três personagens dentro de um imóvel que mais parece uma casa de bonecas. Tilda Swinton, espécie de adereço de luxo dentro do projeto, tem um papel discreto, porém competente, como a mãe da jovem cineasta, enquanto Tom Burke demonstra versatilidade nos diálogos cruéis (“Você acha que este filme faz de você interessante?”). Honor Swinton-Byrne encara o papel silencioso de mulher que recebe todos os estímulos sem realmente provocá-los, demonstrando candura, pudor, uma fala doce e compreensiva. Existe uma Sra. Dalloway escondida ali dentro.
O resultado pode ser considerado progressista por não insistir na obrigação do amor romântico, enquanto permite a Julie relacionar-se com quantos homens quiser, sem ser julgada moralmente por isso. Aliás, explora-se apenas a nudez masculina, ao invés da feminina. Do mesmo modo, persiste ao longo da trama o conceito interessante de que é impossível separar a produção artística da vida pessoal: os problemas afetivos de Julie transformam a sua ideia de filme, enquanto a pesquisa cinematográfica influi em suas decisões dentro de casa. O autor e a obra, o criador e a criatura, tornam-se elementos porosos e interligados. No entanto, o raciocínio metalinguístico fica em segundo plano em relação à aparência polida das imagens, aos brasões e objetos preciosos ao fundo do quadro, às cores pastéis das roupas e à elegância branca dos cômodos. Julie nunca ultrapassa a sua condição de jovem rica e entediada.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.