O criminoso sem crimes
por Bruno CarmeloSeria interessante estar na sala de reunião onde se propôs pela primeira vez o projeto de Ted Bundy - A Irresistível Face do Mal. “O que acham de contar a história de Ted Bundy sem mostrar um único crime cometido por ele? Que tal privilegiar o lado do namorado gentil, do padrasto amoroso, do homem inteligente que efetuou sua própria defesa nos tribunais?”. O ponto de vista é inovador, sem dúvida, após dezenas de narrativas sangrentas sobre o serial killer. No entanto, ele corre o risco de ignorar o essencial: o que tornou este homem memorável não foram suas qualidades de marido simpático, e sim o fato de ter cometido dezenas de assassinatos enquanto negou, durante décadas, a autoria dos crimes.
Por um lado, é interessante que o diretor Joe Berlinger busque a humanidade por trás do monstro. Muitos filmes fascinantes foram criados a partir de mentes perturbadas. Por outro lado, o projeto jamais investiga a motivação de Ted, seu modus operandi ou a consequência dos assassinatos na vida dele e de outras pessoas, pelo simples fato de negar a prática dos crimes. Do início ao fim, o protagonista contesta qualquer acusação, ao passo que a montagem ignora os ataques em elipses generosas. Nos instantes finais, a esposa Elizabeth (Lily Collins) ainda pergunta: “Diga a verdade: você cometeu os crimes?”. É impressionante que o projeto assuma, durante toda a sua duração, a possibilidade de dúvida. É inacreditável que os produtores adotem uma “presunção de inocência” para um dos assassinos mais famosos dos Estados Unidos.
Ora, este não é o caso em que o público desconhece o desfecho de uma narrativa fictícia: a história é plenamente conhecida, de modo que adotar apenas o ponto de vista dele, sem jamais responsabilizá-lo por seus atos, soa antiético. Não é apenas a esposa Elizabeth e a amante Carole (Kaya Scodelario) que vivem em negação quanto aos crimes de Ted: o filme inteiro se encontra in denial, como afirmam os personagens. Ele prefere ignorar as sobreviventes, as famílias das vítimas, o clamor popular (seja ele contra ou a favor), a psicologia do assassino. O privilégio do aspecto injustiçado, carinhoso, gentil e articulado de Ted converte-se em fator atenuante para os crimes. Talvez ele não fosse, afinal, uma pessoa tão ruim...
Berlinger adere ao show de Ted sem distanciamento: o diretor filma em planos próximos a expressão sedutora do criminoso, registra sua nudez em mais de uma oportunidade, ressalta a esperteza a cada tentativa de fuga. A Irresistível Face do Mal não se contenta em mostrar que parte dos americanos considerou Ted Bundy um herói: ele também reforça este discurso. Talvez por isso o roteiro, por mais controverso e lacunar que seja, tenha parecido irresistível a Zac Efron, ator em constante tentativa de desconstruir a imagem de bom moço. Aqui, ele ganha algumas oportunidades de trabalhar a ambiguidade do protagonista. No entanto, por não estar associado aos planos do crime, à execução ou às consequências dos mesmos, não consegue aprofundar a construção. Lily Collins e Kaya Scodelario estão discretas, pois acessórias: elas só existem para orbitar em torno de Ted Bundy, sem terem uma vida própria.
Ao final, o projeto revela as tradicionais imagens de arquivo destinadas a comprovar que diálogos, figurinos e situações foram reproduzidos com exatidão. Entretanto, o questionamento em torno desta biografia nunca disse respeito à “fidelidade” com os fatos, e sim ao ponto de vista: qual olhar é proposto sobre o assassino em série? Depois de tantos filmes acusatórios, maniqueístas e fetichistas sobre o mesmo caso, Berlinger propõe a postura de cúmplice. Ele acompanha Ted durante os dias e as horas, mas fecha os olhos quando a situação o incrimina. “Existem duas maneiras de trabalhar uma investigação”, explica Ted na conclusão de seu processo. “Os advogados podem seguir pistas e indícios até encontrarem o culpado, ou podem partir de um suspeito e fazer com que as provas se encaixem nele”.
A Irresistível Face do Mal já escolheu o seu lado: está junto do réu, não para melhor estudá-lo ou para compreendê-lo, e sim para controlar a história, limitando-a à versão do assassino sedutor. "Eu não sou uma pessoa má", promete Ted, em uma das últimas frases do filme. Em tempos de reivindicação feminina, de luta por reparação histórica e de críticas ao sistema judiciário, a ausência do olhar crítico soa bastante grave. Não será espantoso se familiares de vítimas ou próximos de sobreviventes ficarem muito incomodados com o filme. Afinal, nenhum feminicida merece mais uma exposição atenuante e romantizada de seus atos.