Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Tesnota

A Rússia além da Copa

por Francisco Russo

Sediar uma Copa do Mundo é, também, um tremendo cartão-postal para o mundo, de suas belezas e costumes. Se muitos ficaram fascinados ao ver uma Rússia solar, em pleno verão europeu durante a Copa do Mundo de 2018, o cotidiano não é tão receptivo assim. É justamente esta faceta oculta, entranhada na sociedade russa, a matéria-prima de Tesnota, denso drama local que faturou o prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes 2017.

Situado em 1998, o longa-metragem inicia mostrando uma bela comunhão entre pai e filha, na oficina da família. Todos estão satisfeitos: Ila dá suas escapulidas para encontrar o namorado em meio à cumplicidade com o irmão, os pais levam a vida em paz na pequena cidade de Nalchik, o caçula David anuncia que irá se casar. A breve felicidade logo desaparece quando David e sua noiva são sequestrados, ao voltar para casa. O alto resgate mobiliza toda a comunidade, na tentativa de arrecadar fundos para resgatá-los.

Por mais que tal história seja um convite a um drama carregado em sentimentalismo, explorando a dor da família, o diretor Kantemir Balagov busca o caminho oposto. Tendo como base uma certa frieza nos atos, aos poucos desconstrói esta mesma unidade familiar a partir do que está soterrado na alma, não propriamente nestes personagens mas nos costumes de um povo. É assim que conhecemos a verdadeira Rússia, cujo autoritarismo e machismo estão intrínsecos ao cotidiano, aflorando em um momento crítico.

Esta dolorosa jornada é capitaneada pela vibrante Ila, interpretada com uma paixão encantadora pela ótima Darya Zhovner. Através de seu olhar percebemos não só a excitação do primeiro amor mas também a cumplicidade com o irmão, a partir de um flerte disfarçado, assim como uma até mesmo insólita devoção à hierarquia familiar. É a partir de sua revolta que o machismo aflora, seja pelo possível desenlace da busca desenfreada por dinheiro ou mesmo quando decide perder a virgindade, ao pedir sem sucesso para que seu namorado interrompa o ato sexual. É nos detalhes que Tesnota desvenda quem é a sociedade russa, em suas constantes (e atuais) disputas de povos e mentes a partir do necessário posicionamento da mulher como indivíduo livre.

É interessante também notar como, pouco a pouco, Balagov insere tons políticos na narrativa, sejam eles de forma escancarada, através do vídeo de tortura em plena Chechênia, ou mesmo a partir de simbolismos pontuais. Um deles é a emblemática cena em que Ila vai ao depósito pegar um chocolate Snickers, símbolo norte-americano, e os esconde no próprio corpo; ecos de uma época em que os cobiçados produtos estrangeiros até chegavam ao país, mas sempre através das sombras do mercado negro. Um período nem tão distante assim do período retratada pelo filme, é bom ressaltar.

De ritmo lento, Tesnota apresenta um vigoroso (e doloroso) processo de libertação pessoal frente ao autoritarismo, ao mesmo tempo em que aponta o quão enraizados estão os laços familiares. Este, por sinal, é também um problema do longa-metragem: ao estender além do necessário sua narrativa, o diretor ressignifica o valor da família diante do pensamento russo ao custo de uma nítida irregularidade no desenrolar da trama. Fosse uns 20 minutos menor, o filme iria direto ao ponto neste complexo esforço em mostrar o país além dos cartões-postais.