Mamma mia
por Taiani MendesNeorrealismo italiano foi um movimento da década de 1940 que levou ao cinema o país destroçado pela Segunda Guerra Mundial, pessoas de classe baixa em busca de melhores condições de sobrevivência, histórias sem o glamour das produções realizadas na Cinecittà e dotadas de pulsante veracidade; poeira, esforço e problemas comuns.
É sempre complicado querer incluir obras de outros tempos em correntes clássicas extremamente definidas por seus contextos, mas é impossível não ver Fortunata como um exemplar neorrealista do século XXI. Seria então um neo-neorrealismo? Um neorrealismo 2.0? O futuro dirá. Fato é que o drama de Sergio Castellitto dialoga muito mais, guardadas as devidas proporções e qualidades, com Rossellini e De Sica do que com os dramas familiares burgueses e as comédias populares que polarizam a sétima arte italiana contemporânea.
O neorrealismo longe da perfeição, extravagante e multicultural de Castellitto tem chineses economicamente influentes, refugiados africanos presentes e ignorados, muçulmanos ajoelhados, protagonista apressada, policiais violentos, senso de comunidade, sonho de ir para os Estados Unidos, diagnósticos não dados e médico pouco ético. A meta é a soma de capital, seja pelo trabalho árduo ou pela loteria, não pelo puro desejo de enriquecer, mas pela genuína vontade de empreender e crescer.
Os personagens principais expõem racismos e preconceitos, suam, perdem o controle em público, abusam e são abusados, cospem, matam. Amam muito também, especialmente Fortunata (Jasmine Trinca, excelente), cabeleireira incansável perseguida e violentada pelo ex-marido, traumatizada, “masoquista, afinal é mãe” – palavras suas – e sempre de cabeça erguida.
Sua “sorte” no roteiro de Margaret Mazzantini é a mesma de diversas outras personagens femininas do cinema geralmente assinado por homens: não pode transar que uma desgraça acontece. Em pleno 2018, com tantos avanços, tanta independência, tanta energia de Fortunata carregando a trama, faz sentido a responsabilidade maternal ainda ser colocada em oposição ao prazer sexual de uma mulher? Obviamente não, mesmo considerando as influências de tragédia grega do longa-metragem.
À parte isso, é interessante a forma como o filme trabalha as diversas interações envolvendo mãe e filha/filho, não necessariamente em termos sanguíneos. Diferentes noções de responsabilidade geram respostas marcantes que muito dizem sobre os personagens, dispensando justificativas. Todo o núcleo familiar de Fortunata funciona bem, com destaque para a abordagem dos dramas de Chicano (Alessandro Borghi); recaindo no descontrolado psiquiatra (Stefano Accorsi) a culpa por grande parte da irregularidade do filme, cujos piores momentos sempre têm sua desconexa presença a partir do estranho surto.
Eventualmente o cineasta cai numa breguice de efeitos apelativos ao emocional e exagero melodramático na trilha que não têm explicação ou necessidade, pois sentimentos são atingidos com exatidão por certas interpretações e um acontecimento específico – acompanhados de perto por câmera que entra sem pedir licença e assemelha-se a uma testemunha privilegiada e discreta, com exceção das péssimas cenas do casal principal. A água tem presença forte na narrativa, mas Fortunata busca a liberdade com asas nas costas. Sua sorte é pairar acima de decisões cinematográficas questionáveis e demonstrar muita força, apesar de tudo.
Filme visto na 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em agosto de 2018.