Animais selvagens
por Bruno CarmeloExiste algo ao mesmo tempo sedutor e revoltante na violência dos filmes de Matteo Garrone. O diretor de Gomorra costuma combinar a empatia pelos personagens com agressões extremas infligidas aos mesmos. Ele sugere tanto a existência de uma natureza humana intrinsecamente bruta quanto um conjunto de circunstâncias que permitem sua exteriorização - ou seja, combina o natural e o social. Suas narrativas caminham para uma explosão, um confronto no qual os sentimentos são privilegiados em relação ao raciocínio.
Este funcionamento se torna claro em Dogman, história sobre o encontro entre dois homens opostos. Marcello (Marcello Fonte) é franzino, tem o sorriso fácil, os ombros arqueados em sinal de introspecção. Ele gerencia uma pet shop, na qual demonstra a desenvoltura com cachorros de todos os tipos, incluindo os maiores e mais ferozes. Mas o animal mais bruto que precisa domar é Simone (Edoardo Pesce), um brutamontes que age unicamente por instinto. Ele rouba, bate e mata sem um pingo de remorso, ou mesmo de reflexão. Simone arrasta Marcello em seus planos e o homem, por medo ou incapacidade de recusar, participa.
Durante pelo menos dois terços da narrativa, testemunhamos a relação de abuso entre um sujeito passivo, e o outro, agressivo. Um ataca demais, o outro acata demais. Garrone demonstra uma obsessão pela câmera colada ao rosto dos personagens, com o formato em scope procurando os cortes abertos, as cicatrizes antigas. A brutalidade impõe um mecanismo de cinema de ação: os personagens se comunicam com socos, barras de ferro, tiros. Os sons mais frequentes são aqueles dos motores das motos, devidamente intensificados pela edição, além dos latidos dos cães, o ruído insistente das correntes e portas de ferro. A fotografia reforça o tom frio e azulado da pet shop, transformando o pequeno vilarejo italiano numa espécie de vila abandonada, suja, corroída.
Este é um mundo nada acolhedor no qual, ironicamente, Marcello só quer ser amado. Ele pretende ser o colega respeitado pelos vizinhos, e amigo tanto do violento Simone quanto dos moradores que desejam a sua morte. Mas o roteiro não tem piedade com os ingênuos, e tratará de punir o protagonista por seus amores simples. Da primeira à última cena, o rosto de Marcello será transformado, tanto emocionalmente (o excelente Marcello Fonte diminui a ternura, partindo para a incredibilidade e a ameaça de agressão) quanto fisicamente (o sangue, os golpes, os dentes expostos como os de um cachorro raivoso). À sua frente, Simone continua reduzido à massa bruta, acerebrada.
O mundo de Dogman é bastante fechado: existem basicamente dois personagens, um conflito e um prenúncio de tragédia. A questão, para Garrone, diz respeito à sobrevivência, em outras palavras, matar ou ser morto. O diretor demonstra prazer e competência no retrato desta crueza, em cenas longas, asfixiantes, sempre marcadas por uma produção impecável e uma preciosa coesão estética. Mesmo assim, as imagens não deixam de soar um tanto condescendentes. O horizonte do roteiro não se expande a ponto de questionar o livre-arbítrio, nem explorar diferentes tipos de representação. O poder da sugestão, por exemplo, está ausente: o ponto de vista da narrativa é onisciente, ele presencia os momentos fortes, em posição privilegiada, em enquadramentos sempre muito próximos.
A necessidade de transmitir uma realidade – os corpos que sofrem, os cadáveres arrastados – constrói a noção de um cinema tão realista quanto fetichista, preso ao imediato. Dogman permanece na superfície dos atos, no registro de sensações. Ele transmite a brutalidade de modo igualmente brutal, sem tomar distância de seus personagens física ou moralmente. Para o bem ou para o mal, este é um cinema do prazer da violência.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.