As máscaras do herói
por Bruno CarmeloEthan Hunt escala uma gigantesca parede rochosa. Ele não usa equipamentos de proteção, e após algumas manobras arriscadas, salta no vazio, agarrando-se a uma rocha distante. As mãos deslizam, mas ele consegue se segurar. Nesta cena inicial de Missão Impossível 2, o protagonista não está sendo perseguido, nem foi obrigado a se colocar em risco. Ethan pratica este tipo de atividades porque gosta, ou talvez porque seja capaz de fazê-las. O agente interpretado por Tom Cruise não age por honra ou patriotismo, como James Bond, nem por uma intenção de autodescoberta, como Jason Bourne. Ele se arrisca por prazer. “Você está se divertindo?”, pergunta à bela Nyah quando ambos estão literalmente à beira de um abismo. Ela responde afirmativamente com olhar malicioso, o que desencadeia o beijo e o sexo. Aqui, o perigo é visto como algo sexualmente estimulante.
Não por acaso, a franquia Missão Impossível investe em símbolos clássicos de virilidade, ligados à onipotência. Os homens destas histórias - tanto o herói Tom Cruise quanto o vilão Dougray Scott - são fortes, poderosos, ricos, inteligentes, brancos e munidos da mais alta tecnologia. Ambos disputam a mesma mulher, que cai nos braços de Ethan desde a primeira cena. O dilema desta segunda história não diz respeito a salvar o mundo, e sim a resgatar Nyah (Thandie Newton), uma mulher apresentada como decidida e talentosa, mas que se transforma em uma donzela indefesa assim que algum homem entra em cena. Estamos no ano de 2000, quando o olhar do cinema de ação era invariavelmente feito por homens, para homens. Hoje, em 2018, o machismo velado despertaria críticas.
Outro aspecto curioso da sequência é a maneira virtuosa como John Woo conduz as cenas de ação. O chinês não se interessa muito pelos instantes de espionagem e romance, filmados de modo padrão - com cenários obscuros de laboratórios e quartéis generais, locações paradisíacas em quase todas as cenas externas, planos e contraplanos banais -, mas se deleita com as explosões, perseguições, lutas e tiros. Qual produção atual se dá ao luxo de apresentar coreografias de ação tão complexas em uma infinidade de ângulos cada? Quando Ethan e Sean se chocam no ar, a bordo de suas motocicletas, testemunhamos a cena de longe, de perto, por baixo das rodas, à beira do penhasco. Woo multiplica as câmeras lentas, o olhar vidrado de Cruise enquanto voa com os cabelos ao vento. Por mais kitsch que sejam, esta acrobacias demonstram louvável criatividade - vide as cenas lendárias da faca no olho, do revólver empunhado no ar, das motos voando uma por cima da outra. O diretor prefere ser espetacular ao invés de verossímil: em certos momentos, não estamos muito distantes de um número do Cirque du Soleil.
As cenas de ação possuem um vigor tão impressionante que chega a ser irônico o fato de aparecerem, basicamente, nos últimos trinta minutos. Durante uma hora de narrativa, não existe um confronto sequer, nem um mísero tiro. Nossos mocinhos e bandidos debatem sobre vírus e antídotos, sobre mitologia grega e sobre a necessidade de criar um vilão para justificar a existência do herói - discurso que ecoa a própria estrutura deste e de outros projetos do gênero. Acima de tudo, Missão Impossível 2 serve para consolidar um recurso-chave da franquia, tão simples quanto eficaz: o uso de máscaras. O espectador acompanha a narrativa colado aos passos de Ethan, no entanto, em quatro oportunidades, descobrimos que os personagens em cena na verdade são outras pessoas, usando uma máscara arrancada com prazer diante do inimigo, para revelar a real identidade do larápio. Essas máscaras são inverossímeis, saindo de lugar nenhum e introduzidas em situações improváveis, mas passemos: elas servem para integrar o espectador à brincadeira e lançar a divertida ideia de personagens interpretando personagens.
Sem surpresa, o herói é recompensado com a mocinha em seus braços, além de uma leve cicatriz para tornar explícito o fato de ter se envolvido em lutas, brigas, e ter sobrevivido. O perigo é excitante, lembram? Por mais que Ethan ostente um arranhão aqui ou ali, é improvável que se machuque de verdade, ou que morra. O agente embarca em cada nova missão porque sabe que vai vencê-la, e o espectador torce por ele pelo mesmo motivo. Existe uma lógica análoga ao do videogame nestas aventuras de ação: o mocinho empunha armas, supera obstáculos, encara um grande vilão no clímax e ganha a sua recompensa. Logo, está pronto para novos desafios - que supomos serem ainda maiores, ainda mais perigosos, ainda que prometam o sucesso do herói. Nos dezoito anos que se seguiram, quatro novos filmes com o protagonista surgiram no cinema, e os produtores certamente têm mais alguns em mente.