Elementos desalinhados
por Sarah LyraEm filmes de catástrofe, há dois elementos essenciais para garantir um engajamento mínimo por parte do espectador. O primeiro consiste em uma apresentação, em algum ponto da trama, do espaço onde a tragédia se passa; este ambiente vai impor as regras do jogo e nos oferecer uma noção das dificuldades a serem superadas pelos personagens ao longo de suas trajetórias. O segundo é uma identificação, mínima que seja, com o grupo de pessoas em busca da sobrevivência. Em Ameaça Profunda, há uma disposição notável em ignorar esses dois aspectos, e o resultado é mais desastroso do que a explosão do laboratório subaquático encarregada de iniciar a história protagonizada por Norah (Kristen Stewart).
Nos créditos de abertura, o simples movimento de câmera da superfície até o fundo do mar se torna instigante o suficiente para demonstrar quão assustador e atípico é o espaço habitado pelos personagens, ainda mais se levada em consideração a força poderosa que é o mar. O problema vem quando percebemos que, ao contrário do que se espera, o filme se contenta com apenas esta tomada. Logo, o que pareceria um rico local a ser explorado se torna apenas um lugar confinado qualquer, sem que suas particularidades sejam identificadas para o espectador. Isso vale tanto para a base gigantesca do laboratório, com seus túneis, andares e construções sofisticadas, quanto para a água que os cerca, principalmente quando se pensa em pressão atmosférica, volume, e ausência de oxigênio.
A maior prova de que o longa não trata com seriedade o fundo do mar está no fato de sentir a necessidade de incluir um monstro marinho como ameaça para o grupo — como se estar a onze mil metros de profundidade em uma plataforma à beira da destruição não fosse assustador por si só. No entanto, não é a presença de uma criatura de origem desconhecida que torna a produção problemática, é a apatia e condescência com que trata todo seu universo, a começar pelos personagens. O roteiro faz questão de abrir com uma narração que tem o propósito de mostrar o pessimismo de Norah, o que é reforçado minutos depois, quando ela aponta o risco óbvio de executar um plano arriscado. “Você pode ao menos admitir a possibilidade de morrermos?”, questiona ela. “Sim, mas prefiro acreditar na possibilidade de vivermos”, responde o capitão (Vincent Cassel), deixando claro, mais uma vez, que Norah é do tipo que vê o copo metade vazio, como ela mesmo se descreve.
Após a introdução didática mencionada acima, esse ponto da personalidade da protagonista jamais é mencionado, ou sequer tem alguma relevância durante a trama. Por não sermos devidamente apresentados à estrutura do local, a sensação é de que os personagens vão criando regras e barreiras que os convém, seja no sentido de quebrá-las ou de criar uma noção de ameaça. Note como os pesquisadores verbalizam constantemente o perigo iminente, mas a execução dos planos nunca é tão desafiadora quanto sugerido pelas falas. Esse tipo de recurso mostra que o roteiro está interessado em criar um suspense raso e imediato, sem realmente definir ações coerentes de acordo com o espaço. No caso do fundo do mar, a própria movimentação na água, com um traje grande e pesado, deveria ser um problema, mas o filme ora usa isso como empecilho, ora mostra cenas de ação em que os personagens correm na água sem nenhuma dificuldade.
Além da ação, que na maioria das vezes consiste apenas no balançar frenético da câmera, aliado a uma montagem que pouco revela sobre a cena, Ameaça Profunda tem dificuldades em acertar o alívio cômico, com piadas no segundo ato tão desconexas em tempo e tom que beiram o constrangedor. Mais adiante, rumo ao desfecho, o projeto decide promover uma consciência ambiental que jamais é abordada anteriormente, tornando-se não apenas oportunista como apelativo em sua tentativa. “Não deveríamos estar aqui, perfuramos demais”, diz uma personagem; “nós tomamos muito, e agora a natureza está pegando de volta”, responde outra. Chama atenção o fato de que perfurar o fundo do mar por anos e montar uma enorme base de pesquisa não tenha despertado qualquer tipo de reflexão previamente, foi preciso uma criatura marinha mutável ameaçar suas vidas para que entendessem o recado. Mais sintomático ainda é perceber como Norah sela seu destino, executando uma manobra que certamente teria um impacto ecológico ainda pior.
Sem demonstrar qualquer lógica espacial, temporal e narrativa, ou ao menos brincar com o absurdo dessas graves ausências, Ameaça Profunda se encerra fazendo o mínimo, e sem consciência do que pretendia alcançar.