Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
El Mar La Mar

Um deserto sem imagens

por Bruno Carmelo

O projeto se abre com paisagens à beira da estrada em 16mm, filmadas através de um veículo em movimento. Temos a impressão de que os diretores Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki seguem pela experimentação de texturas da imagem, mas este caminho é logo abandonado. Depois uma narração em off sugere a presença de um monstro que teria afugentado pessoas na região. No entanto, o estímulo pelo folclore popular também desaparece. Começamos com uma estrutura em três atos, apenas para perceber que se trata de uma pista falsa, pois o segundo ato, sozinho, engloba praticamente o projeto inteiro.

El Mar La Mar é um filme de bifurcações, de caminhos sem saída, de atalhos mais longos que a estrada oficial. Quando o espectador se acostuma a um tipo de linguagem, ela cede espaço a outra, e assim por diante. O ímpeto de constante negação de si mesmo serve a retratar um local muito conhecido no imaginário coletivo ocidental: o deserto separando o México dos Estados Unidos. Este já foi o cenário para dramas e aventuras, tendo inspirado cenas de coragem e justiça social, além de retornar ao debate contemporâneo devido ao discurso xenofóbico de Donald Trump.

Entretanto, os cineastas decidem se apropriar do local pela forma de uma evocação abstrata, distante, destituída de seu valor simbólico atual. Neste deserto-poesia, narrações em off descrevem casos de pessoas que perambularam durante dias, sem água nem comida, para tentar uma vida melhor no país vizinho. Algumas morreram de fome ou desidratação, outras foram capturadas por policiais ou ainda atacadas por animais selvagens. Nenhuma dessas imagens é vista em tela: a cada novo episódio de travessia, a tela escurece, deixando que o espectador complete com imagens mentais a descrição sugerida.

Em outros momentos, temos indícios de uma travessia: paisagens áridas distantes, garrafas d’água, uma mochila presa entre os arbustos, a casa que teria acolhido um jovem perdido de seu grupo. Mas o deserto permanece vazio de pessoas, vazio de ação e de imagens. Estamos no terreno da representação pela ausência, da estimulação de sentidos que se sobrepõem aos fatos. Tanto a história de monstros quanto a história de passantes são retratadas com mesmo grau de realismo, cabendo ao interlocutor filtrar o que lhe interessa nestes relatos.

O cinema torna-se menos um registro fotográfico do que um meio para contar histórias. A veracidade, neste caso, importa pouco – algo particularmente interessante dentro do gênero documentário – sendo mais importante a relação elástica entre o referente e sua representação. El Mar La Mar transmite a sensação de convidar o espectador para se sentar perto de uma fogueira, onde cada um conta a história que quiser, rodeado pela noite escura, deixando a imaginação fluir. A transformação da fronteira num local imaginário, povoado por mortes reais e monstros fictícios, constitui o maior ponto de interesse do projeto às vezes um tanto arrastado e desconexo, mas ainda assim repleto de evocações potentes.

Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.