Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Filhas do Sol

O rosto da mulher que sofre

por Bruno Carmelo

O imaginário da guerra sempre foi tipicamente masculino, não apenas pela presença majoritária de homens, mas pela reprodução de códigos da virilidade simbolizados pela dominação e violência. Historicamente, as mulheres estão presentes neste contexto, mas Les Filles du Soleil não deseja falar do trabalho de enfermeiras ou colaboradoras, e sim de um batalhão feminino que luta pela liberdade curda no Iraque, pegando em armas contra os grupos que sequestraram, estupraram e venderam mais de sete mil mulheres no país.

A diretora Eva Husson busca o contato com o público médio, e para isso utiliza todos os códigos do cinema hollywoodiano de guerra, incluindo grandes planos aéreos, trilha sonora grandiloquente e ininterrupta, câmeras lentas para prolongar a duração de um tiro e, principalmente, os close-ups. O uso abusivo das imagens de rostos durante momentos de sofrimento costuma taxado de explorador, além de excessivamente melodramático (a comparação com telenovelas é frequente), mas Husson não se incomoda ao fechar o enquadramento nas faces que gritam contra o estupro das irmãs ou cantam um libelo de esperança. A cineasta deseja sublinhar a dificuldade, caso alguém ainda não tenha entendido o calvário das personagens.

Esteticamente, o projeto se revela competente, ainda que pouco sofisticado. A narrativa se divide entre o tempo presente e os flashbacks, nos quais apresenta as provações enfrentadas pela soldada Bahar (Golshifteh Farahani), compartilhadas com a jornalista francesa Mathilde (Emmanuelle Bercot). Mesmo que as mulheres passem à ação, incomoda o modo como o roteiro prefere enxergá-las, acima de tudo, como mães: o principal motivo para o combate diz respeito a seus filhos desaparecidos, mortos ou distantes. Bahar procura o filho na escola, outra combatente está prestes a dar à luz durante uma fuga. Trata-se de cenas exageradas, sobretudo por não desenvolverem nenhuma outra personagem além de Bahar e Mathilde. O resto do batalhão permanece anônimo.

Apesar destas deficiências, o projeto se sustenta na bela atuação de suas atrizes principais. Farahani e Bercot são expressivas, capazes de grande variação emocional e equilíbrio de tons: durante as cenas catárticas, conseguem evitar a saturação de gestos. Mesmo as frases de efeito de Bahar e a leitura solene da reportagem de Mathilde são devidamente amenizadas pelo tom cru das atrizes. A interação entre ambas se revela verossímil pelo uso da língua e por minúsculos indícios de aproximação – numa noite, por exemplo, o ruído do possível inimigo desperta apenas as duas protagonistas. O roteiro trabalha com a noção de destino, uma dupla feita para se encontrar e se ajudar.

As Filhas do Sol (em tradução literal) se conclui como uma aventura de sobrevivência voluntariamente apoiada na previsibilidade. Não espere descobrir nenhuma informação específica sobre o conflito curdo, sobre as origens sociais, religiosas e políticas daquela disputa. Os tradicionais letreiros de introdução e encerramento fornecem a mínima informação necessária. Husson trabalha com conceitos amplos de guerra e solidariedade feminina em meio às adversidades. Bahar, Mathilde e as outras personagens não são retratadas em suas habilidades particulares de soldada, estrategistas nem fotógrafas. Elas são resumidas à condição de mulher, num sofrimento que parte de um núcleo específico e se pretende universal, passível de identificação com todas as espectadoras dentro da sala de cinema.

                                                                                                                                  

Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.