Jornada da Vida: Crítica AdoroCinema

Um homem francês, de origem senegalesa, retorna ao Senegal durante uma viagem. Quando propõe cuidar uma mulher local, escuta uma resposta direta, porém afetuosa: “A colonização já acabou, sabia?”. O diretor Philippe Godeau tem consciência de que, por trás da fábula do artista famoso que se torna amigo de um garotinho africano, ele propõe, na verdade, uma reconciliação entre Europa e África, entre colonizador e colonizado. O grande desafio era evitar a mensagem perigosa de que ambos os lados têm muito a aprender um com o outro, como se os africanos possuíssem alguma dívida com seus colonizadores. Por mais que deseje unir estes mundos através do afeto, seria impossível colocá-los em pé de igualdade.

O diretor consegue, em partes, cumprir com o objetivo. Jornada da Vida ameaça com frequência se transformar num melodrama, porém o roteiro e a direção se esforçam para segurar o drama numa esfera de observação e respeito. Seria tentador, caso estivéssemos num projeto hollywoodiano, reforçar o peso da situação de Yao (Lionel Basse) enquanto órfão, sublinhar a miséria dos habitantes locais, incluir alguma doença dos familiares, ou ainda se voltar à arrogância do europeu em vias de se tornar uma pessoa melhor após descobrir a pobreza no mundo. Felizmente, a narrativa foge à postura salvacionista e à purificação do burguês arrependido. Neste filme, interessa sobretudo a descoberta de uma cultura distinta.

O projeto trata de observar com naturalidade a maneira como a religião muçulmana condiciona a vida diária (com destaque para a bela cena da prece coletiva nas ruas), e como a comida, a dança, a música e o trabalho locais diferem da concepção “branca” de civilização. É interessante que Seydou Tall (Omar Sy), homem negro, seja considerado branco pelos habitantes locais, não pelo tom de sua pele, mas por seus costumes. Neste momento, a etnia se torna não apenas uma questão de cor de pele, mas de identidade, de lugar no mundo. Godeau sabe se colocar em posição de espectador atento diante da apresentação de uma bela cantora (Fatoumata Diawara) e do ritual de uma dançarina local (Germaine Acogny). Explica-se pouco, intervém-se menos ainda. Nesta situação, o cineasta assume seu ponto de vista externo, priorizando a gestualidade e o discurso dos senegaleses. Godeau sabe impor o realismo necessário à fábula, tornando-se uma espécie de parceiro solidário aos africanos ao invés de falar em nome deles.

Ao mesmo tempo, o diretor se contenta com uma cartilha cinematográfica bastante simples. Cenas de movimentação complexa são resolvidas com uma simples panorâmica (a câmera deslizando lateralmente sobre o tripé),conversas se resumem a planos e contraplanos, as apresentações artísticas das personagens femininas são vistas de maneira frontal, com trabalho básico de iluminação. A modéstia do discurso é estendida à linguagem cinematográfica, que se faz invisível, ou pouco memorável, para não se sobrepor ao conteúdo. Talvez houvesse possibilidades de ousadia que não se convertessem em exibicionismo do autor, porém Godeau prefere associar o humanismo ao despojamento formal.

Isso significa que nem todas as cenas são muito bem resolvidas, especialmente pela montagem. A paixão do garoto pela literatura e as cenas frontais do carro empoeirado pelas estradas, em especial, poderiam ganhar um trabalho mais apurado. No entanto, para cada sequência de composição acadêmica, Jornada da Vida reserva importantes momentos de silêncio, a exemplo das cenas em que Seydou se depara com o interminável horizonte da paisagem local, ou quando observa o mar ao lado do garotinho. Nestes breves instantes, o drama encontra sua potência e reafirma a beleza da simplicidade, longe do olhar exótico do estrangeiro.  

A resolução, aliás, dissipa o receio quanto ao possível sentimentalismo, privilegiando o olhar do garoto àquele do adulto, e posicionando-se junto do território africano, ao invés de partir com o francês. Existe uma postura política – mais bem-intencionada do que propriamente engajada, é verdade – nestas escolhas de câmera e decupagem. A viagem efetuada neste filme não é apenas a de Tall rumo ao Senegal, mas também à do olhar da câmera, que abandona o conforto do apartamento francês para observar as casas de Dakar, efetuando uma espécie de transferência da autonomia ao garoto local. No início, é o ator famoso quem conduz Yao, até este começar a controlar os rumos da narrativa. Por mais singela que seja, vale destacar esta generosidade do olhar.