Louco poeta invisível
por Rodrigo TorresA câmera perscruta solene um corredor de hospital. Ao fundo, sons diegéticos de portas se abrindo eletronicamente e sendo trancadas, batendo forte. Um estranho passa, depois uma enfermeira. Mas o que chama atenção é a via estreita, restrita. São cinco longos minutos em que nada além acontece e o desconforto toma conta do espectador. O sentimento de clausura se instaura. As cartelas de abertura de 12 Dias ganham ressonância.
Essa primeira intervenção explica que o paciente internado em instituição psiquiátrica contra sua vontade, apenas desde 2013, passou a ter direito de requerer sua liberdade após 12 dias de internação, em audiência com um juiz de liberdade e detenção incumbido de analisar seu caso na presença de um psiquiatra, e a cada seis meses depois disso — caso necessário, caso ainda preso. A outra cartela cita Michel Foucault: "De homem a homem verdadeiro, o caminho passa pelo homem louco", pensamento que vale aprofundar mais adiante.
Em entrevista recente ao AdoroCinema, Raymond Depardon se define como um fotógrafo que migrou para o cinema em busca da palavra — o que, em autocrítica, ele admite soar contraditório. Pois não, não mesmo. Cineastas em geral se empenham em demasia a uma linguagem narrativa, tradicional, preterindo a construção de sentido pela imagem. Depardon, ao contrário, potencializa a história pelo que se vê, assim como interrompe o fluxo narrativo, abruptamente, para exibir uma imagem que se torna ainda mais linda e potente pelo contraste com o discurso duro.
Nesse cenário, Raymond Depardon pode ser apontado como um híbrido de dois célebres artistas brasileiros: Sebastião Salgado (O Sal da Terra), por seu prestígio internacional como fotojornalista e apuro artístico com que emprega a fotografia em seus filmes a despeito — e a serviço — de sua linguagem naturalista e base no cinema direto; e o documentarista Eduardo Coutinho (Jogo de Cena), pelo esforço em visibilizar pessoas à margem, pela habilidade de arrancar-lhes relatos como que numa obra de ficção, pungentes, e por sua profunda humanidade, percebida na premissa de 12 Dias (e sua filmografia como um todo) e nas nuances de montagem e seleção das audiências entre pacientes e juízes.
Distribuindo três câmeras disfarçadamente no espaço em que ocorrem as entrevistas, Depardon transforma um plano e contraplano clássico (a terceira tomada é sempre em plano conjunto) em uma dinâmica sofisticada, de subtexto riquíssimo, pelo encadeamento contínuo entre defesa do paciente e reação da pessoa que o julga. A câmera de Depardon torna claro o fato de as autoridades francesas terem corrido para formar aqueles juízes, registrando que não há entre eles uma consonância de perfil, abordagem, tampouco vestimenta (um deles usa jaleco). Ora impacientes, ora só indiferentes, todos os juízes em cena soam como burocratas com uma decisão tomada à priori, cumprindo a mera função de atender a um protocolo para que a França não seja punida pela ONU. Diante disso, é cortante que todos os pacientes queiram a liberdade, pois ninguém sai.
Desse modo, Raymond Depardon estabelece um cenário de pessoas não ouvidas. Gente tirada da sociedade por ser vistas como loucas nunca mais serão respeitadas. Não raro, enquanto elas falam, a câmera corta para a expressão de desinteresse do juiz. Já o primeiro entrevistado é questionado se está em busca de emprego naquele momento — pergunta sintomática sobre o despreparo da juíza, ou seu desdém em julgar de fato, com empenho, análise, isenção; provavelmente ambos. "Não, eu estou em um hospital psiquiátrico", ele responde. Sem desrespeito. Em um impulso que pode ser interpretado como reflexo de seu distúrbio, mas jamais perderia a força; uma tirada que nunca será menos brilhante.
Raymond Depardon define esses rompantes como achados de poesia. Alguns deles bem o são mesmo. Outros refletem febres coletivas, como o mito do Islamismo ou a paixão do futebol. Uns poucos se mostram bem loucos. E a maioria é muito humana. Curiosamente, as mulheres se mostram mais autoconscientes e fornecem depoimentos comoventes para justificar seu abalo psicológico: assédio moral no trabalho, abuso sexual nas ruas, casos que denotam a opressão ao feminino na sociedade. Dentre os motivos para sair do hospital Le Vinatier, desde o anseio de cometer suicídio ao desejo de voltar a casa para amar sua filha. Um imigrante com passagem pela polícia emociona em declarar que já possui consciência de si mesmo e da lei, condições de se sustentar, reivindicando o direito de cumprir com suas obrigações (um dever) como qualquer outro cidadão — normal. Palavras assim tocam qualquer um com discernimento sobre o que significa o cerceamento de um indivíduo.
Michel Foucault baseou sua obra em estudar a loucura e constatou, historicamente, os equívocos cometidos desde que o cartesianismo, no século XVII, iniciou a perseguição a essas pessoas. Em certo ponto, ele percebe que o diagnóstico da insanidade tem influência cultural, do meio, estando a pessoa a serviço do Estado ou instituição sujeita a fazer um julgamento injusto, respaldado apenas no poder que lhe é conferido. É exatamente isso que vemos em 12 Dias. Rodado em plena terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Da mesma forma, a epígrafe do filósofo destacada no início sintetiza o que tantas vezes se projeta a seguir: seres humanos que viveram com intensidade o abatimento, a rebeldia, a violência — então sendo tratados como loucos — com argumentos que traduzem lucidez, gradual recuperação; o tal encontro do "homem verdadeiro", do cidadão pleno, de uma nova maturidade pessoal. "Não se chega à consciência sem dor", dizia o psicanalista Carl Jung. Não há crescimento sem que antes haja um tipo de ruptura. É assim até biologicamente, no que tange à massa muscular. Na natureza, na evolução das espécies. É natural. O surto pode ser natural, e o indivíduo voltar a si, como ocorre a todos nós. 12 Dias salienta, assim, a crueldade de se privar a liberdade de "loucos" que se apresentam como pessoas com problemas normais. E o sofrimento e a invisibilidade decorrentes do enclausuramento, independente de quem seja, sob que pecha.
Além da modulação entre os diferentes dramas e níveis de instabilidade — agressiva, emocional, motora, psíquica — dos pacientes, conferindo um ritmo próprio e o poder de engajamento de 12 Dias, Raymond Depardon se vale de seu dream team para o sucesso do projeto, excelente em sua proposta: o montador Simon Jacquet, que adota um processo particular para a edição fluida do longa-metragem; Claudine Nougaret, produtora, esposa e engenheira de som responsável pela ótima captação tanto dos julgamentos, como dos sons diegéticos; e o compositor Alexandre Desplat, que se mantém discreto até realçar as cenas finais nas ruas com uma trilha sonora inspiradíssima: de uma melancolia que ilustra a chuva e a neblina que assolam Lyon, de uma beleza que ressalta a qualidade da fotografia e do exterior — da liberdade.
Filme visto na Mostra Depardon Cinema, em janeiro de 2018.