Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Imagem e Palavra

A imagem é uma forma de violência

por Bruno Carmelo

Efetuar uma reflexão a partir deste projeto é uma tarefa tentadora, mas nada fácil. Uma análise linear e estruturada pode se revelar não apenas infrutífera, mas também contrária à ideia do filme. Para criticar a colagem cacofônica de Jean-Luc Godard, talvez fosse necessário desenvolver uma análise igualmente fragmentada, uma forma de arte em si própria. Na incapacidade de criar uma obra de arte para dialogar com aquela proposta pelo diretor, segue abaixo a iniciativa necessariamente falha de lançar ideias, ainda que dispersas, sobre o filme.

Le Livre d’Image parte de alguns conceitos fundamentais. Entre eles se encontra a noção de que toda representação do mundo constitui uma violência em si, por significar o olhar de uma pessoa particular, num momento específico e, portanto, necessariamente subjetivo e seletivo. Aquilo que Oscar Wilde dizia sobre a crítica de cinema – todo texto crítico diz muito mais quem o escreve do que sobre a obra analisada – se aplicaria por extensão ao criador de cinema. Qualquer filme diria mais sobre o ponto de vista daquele que o faz do que sobre o tema abordado. Esta seria, aliás, uma boa definição para a política dos autores como um todo.

Utilizando apenas imagens disponíveis, sem captar cenas próprias, Godard trabalha com a reconfiguração de imagens e sons. As narrações são interrompidas, repetidas, sobrepostas a outras. As cenas são alteradas em sua cor, seu formato de tela, sua duração, seu discurso. O cineasta vai de encontro a algumas ideias originárias da teoria de cinema, quando se sugeria que a montagem era o elemento específico desta arte em comparação às precedentes. Deste modo, seria através da articulação de montagem que se construiria algo especificamente cinematográfico – o montador se tornando, portanto, o verdadeiro autor. O diretor assume essa postura num exercício frenético, dadaísta, que articula ideias sobre o uso de referências e sobre a velocidade das imagens contemporâneas, mas jamais se atarda em nenhuma delas, talvez para não se transformarem em narrativa.

Um dos méritos mais importantes do projeto é unir imagens que foram criadas na intenção de se tornarem arte, a exemplo de cenas de outros filmes, com aquelas elaboradas sem este propósito, incluindo vídeos caseiros, reportagens televisivas e desenhos infantis. Todo material audiovisual teria potencial para se tornar arte, contanto que articulado com tal propósito. Mais do que um cinema experimental, estamos numa forma de cinema conceitual, buscando a abstração como forma máxima de (des)construção de sentido. A cinefilia do conjunto é evidente, assim como a vocação para a arqueologia das imagens e para uma filosofia libertária sobre a crise política no Oriente Médio.

Quando o filme adentra as imagens do mundo árabe, feitas especialmente por ocidentais, e consequentemente repletas de fetiches e incompreensões, o segmento se torna uma narrativa à parte, um filme dentro do filme. Pode-se supor que toda a introdução sobre a natureza da representação tenha servido apenas para preparar o discurso sobre a nossa incapacidade de compreender o outro através do cinema – mas que não nos impede de tentar, de modo utópico. Godard critica o cinema enquanto faz cinema, critica as imagens do mundo árabe enquanto produz novas imagens sobre o mundo árabe.

É curioso perceber que, em 2018, Godard faz uma forma de cinema próxima daquela que Chris Marker propunha nos anos 1980 – no caso de Marker, em oposição ao nascimento de uma forma massificante de cinema industrial americano e às guerras Fria e do Vietnã, e no caso do suíço, em oposição ao cinema pós-moderno e monopolista, e às guerras da Síria, do Iraque e outras contemporâneas. Trata-se de cinemas de resistência por definição, uma defesa da crença que a política das imagens precisa passar pela descolonização do olhar.

É igualmente curioso pensar que, caso um jovem cineasta desenvolvesse uma proposta semelhante, jamais seria selecionado para a competição principal do festival de Cannes. Godard precisou fazer muito cinema ficcional, linear e narrativo – do tipo privilegiado pelo festival francês, majoritariamente masculino, branco e europeu – para ganhar o passe livre e efetuar ousadias do gênero. Se tivesse uma assinatura diferente, a obra seria exibida numa galeria ou museu. Mas Godard adquiriu um status elevado o suficiente para ter a liberdade (e a impunidade) de fazer o que quiser – inclusive esta complexa reflexão sobre as imagens.

PS: Na saída do filme, duas jornalistas conversavam sobre a experiência. “Gostou?”, perguntou a primeira. E a segunda: “Acho que não tenho conhecimento o suficiente para entender o que ele diz”. Talvez esta seja a principal limitação desta forma de cinema referencial e autofágico: ele supõe deter um conhecimento que, por princípio, seria ignorado pelo interlocutor. Seria um cinema feito não para o espectador, mas apesar dele.