Embaralhando as peças
por Bruno CarmeloO que têm em comum um cadáver boiando num rio, tiras de bacon fritando ao fogo, uma blogueira neo-hippie, um adolescente com problemas na bicicleta, cenas coreografadas de sexo grupal e um cineasta gay? Talvez nada, exceto pelo fato de constituírem os principais núcleos narrativos do suspense Discreet. Desde as primeiras cenas, a edição alterna euforicamente estas subtramas, sugerindo uma conexão potente e esclarecedora entre elas.
O filme do diretor Travis Mathews poderia ser descrito como cinema experimental, no sentido estrito do termo: seu objetivo principal não é desenhar personagens, nem conflitos, e sim explorar a linguagem do cinema. Mas enquanto muitos filmes experimentais brincam com a estética (textura da imagem, cores, luzes, profundidades etc.), o diretor prefere ousar na forma de contar a história. Esta é, portanto, uma experiência narrativa: partindo de uma premissa típica do cinema de gênero, Mathews embaralha as peças e as testa os limites da arte de contar histórias, complicando, por prazer conceitual, um suspense bastante simples.
O início apresenta todos os elementos necessários para fisgar o espectador. O corpo boiando num rio desperta o interesse pelas identidades do assassino e da vítima, enquanto uma coleção de ruídos assustadores surpreendem pela associação às imagens claras e banais do road movie. Que perigo é este, existente de dia, ao ar livre? Quem seria realmente o protagonista, o diretor Alex (Jonny Mars)? Como se desenvolve a sua obsessão pela blogueira? De que maneira se relaciona com o caçador local Miguel (o curador brasileiro João Federici)?
Discreet sustenta o mistério ao longo de toda a trama. As imagens são cuidadosamente compostas, enquanto a presença indireta do sexo sugere uma atmosfera de crime passional. As imagens se repetem (o bacon, o suposto avô do protagonista, os encontros furtivos numa locadora pornô), reforçando a noção de perigo entre elas, além de um possível circuito paranoico. Estamos muito próximos do terreno de absurdos propostos pelo diretor Quentin Dupieux (Rubber, Wrong, Réalité), porém desprovido de humor.
Há algo solene por trás das ações perigosas destes personagens com vocação para assassinos (o suposto avô, a mãe alcoólatra, Alex) ou vítimas (o garoto angelical, a blogueira pacífica). Estamos no terreno direto das pulsões de vida (o sexo) e de morte (o assassinato). Apesar de elementos tão sanguíneos, o resultado impressiona pela frieza, pela superficialidade dos personagens. Os coadjuvantes são desenhados a partir de um único traço de personalidade, enquanto o protagonista, interpretado de modo etéreo por Jonny Mars, não transmite a obsessão, o desejo de vingança nem o instinto sexual que se esperaria a partir das ações vistas em cena.
O resultado, portanto, beira a frustração dentro dos códigos do cinema de gênero: apesar da embalagem lustrosa, com imagens belas e sons instigantes, existe pouco conteúdo neste pacote. Mesmo assim, no que diz respeito à experimentação, Discreet representa um avanço de Mathews rumo à radicalização da linguagem, após o clássico I Want Your Love e o disperso Interior Leather Bar. No entanto, o cineasta precisa ficar atento para que a dedicação às formas não implique na alienação do público.
Filme visto no 67º Festival de Berlim, em fevereiro de 2017.