Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Corpo Elétrico

A cidade é nossa

por Bruno Carmelo

Dois homens deitados numa cama, nus. Eles falam sobre o mar, a vida. Percebe-se que estavam juntos, fizeram sexo, mas nenhum deles pretende ter um envolvimento mais profundo. “Somos amigos”, concordam. Tamanha leveza neste debate poderia ser considerada uma afronta à moral e os bons costumes. No entanto, Corpo Elétrico conduz seus personagens com a naturalidade de quem evita julgamentos e conhece este universo de perto.

Estamos falando de um grupo jovem, paulistano, de classe média-baixa, aberto a novas configurações de sexualidade e gênero. Trata-se de um ambiente livre de amarras a instituições sociais: nenhum personagem é particularmente próximo das famílias, de alguma religião, de partidos políticos, de uma equipe esportiva. A união se faz pelas amizades, despretensiosas e ao mesmo tempo duradouras, entre Elias (Kelner Macêdo) e os colegas de uma confecção de roupas. Dia após dia, eles saem de suas casas, vão para a fábrica, para o bar, para as camas uns dos outros. No dia seguinte, com olhos de ressaca, voltam ao emprego.

Corpo Elétrico é um filme excelente na apreensão de um certo ar dos tempos contemporâneos. Esta juventude não sonha em ter o carro do ano, em juntar dinheiro para comprar uma casa ou ascender na hierarquia da empresa. Sem perspectivas de melhorias sociais, eles desfrutam do instante presente com prazeres baratos. Os personagens conversam entre si com uma naturalidade jovial, em diálogos que soam improvisados. Os figurinos, os objetos das casas, os acessórios se encaixam nos corpos como se fizessem parte deles.

É possível acreditar em todas as piadas, provocações, jogos de sedução. Os atores são brilhantemente dirigidos, criando uma impressão verossímil de intimidade e coletividade. O despojamento de Kelner Macêdo, a destreza de Georgina Castro e Nash Laila com os diálogos, o humor das tiradas de Lucas Andrade e a bem-vinda espontaneidade de Márcia Pantera e Linn da Quebrada, artistas LGBT de renome, compõem um conjunto capaz de unir o realismo típico do registro documental ao controle da estrutura fictícia. As cenas com os colegas reunidos, em festas ou na casa dos amigos, são particularmente bem executadas.

O mérito da orquestração cabe ao diretor Marcelo Caetano, mais preocupado em dar protagonismo a figuras populares do que em esbanjar contorcionismos estéticos. O diretor permite que os personagens falem uns por cima dos outros, numa edição de som “suja” e apropriada ao realismo das festas. Ele compõe uma série de enquadramentos fixos, fechados nos personagens de modo a dissipar qualquer impressão de aleatoriedade. Neste aspecto, talvez alguns enquadramentos sejam rígidos e restritos demais, quando um pouco de movimentação ajudaria no dinamismo.

Mesmo assim, em meio a uma estrutura tão contida, algumas cenas se destacam. A primeira delas é a belíssima saída dos funcionários na usina, caminhando por uma rua escura enquanto o enquadramento foca em alguns personagens e perde outros de vista, criando uma série de quadros-dentro-do-quadro, em plano-sequência. Outra cena impressionante vem do deslocamento de duas motocicletas e um carro pela noite, com travestis e drag queens rindo e se expressando em total liberdade, com os braços abertos como se pudessem abraçar a cidade inteira.

Como representação do universo LGBT, Corpo Elétrico revela-se um projeto de nuances. A sexualidade é um aspecto essencial da vida destes jovens, mas não se transforma em motor de conflito: os personagens gays o são abertamente, com a aceitação dos colegas. Para o projeto, o fato de ser gay/lésbica/trans/travesti não teria porque constituir um conflito na sociedade. Caetano evita tanto a denúncia quanto a idealização, situando esses personagens numa configuração de urgência, um afastamento dos olhares externos. Esta é quase uma bolha social, porém voluntária, autossuficiente e feliz. A única família que importa nesta história é aquela formada por laços de afinidade.

Por fim, a trama se move por conflitos mínimos, sem reviravoltas marcantes. Algumas cenas chegam a soar repetitivas, a exemplo da chegada de Elias ao trabalho, filmada na mesma rua, pelo mesmo ângulo. Entretanto, a intenção do projeto não é encaminhar os seus personagens a um rumo preciso, apenas acompanhá-los dia após dia, como se desconhecesse seus próximos passos. Como um cronista afetuoso, o filme resgata o valor do banal, das comunidades sem crises nacionais, sem julgamentos sociais, sem preocupações com o passado ou com o futuro. Um projeto político não por alinhamentos partidários, e sim pela defesa da total autonomia do indivíduo.

Filme visto no 12º Festival de Cinema Latino Americano de São Paulo, em julho de 2017.