Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Deixe a Luz do Sol Entrar

O que ela quer

por Taiani Mendes

É como uma convenção de titânides francesas: Claire Denis, uma das maiores diretoras em atividade; Juliette Binoche, atriz reconhecida mundialmente; e Christine Angot, autora famosa nacionalmente por O IncestoDeixe a Luz do Sol Entrar acompanha a saga amorosa de Isabelle (Binoche), pintora que anseia aquietar seu coração encontrando a paixão de sua vida. Não é fácil. Apesar da cineasta negar que o filme seja inspirado no clássico de Roland Barthes Fragmentos de um Discurso Amoroso, conforme chegou a ser anunciado o projeto, é bastante possível a aproximação. Enquanto a obra de Barthes reúne discursos apaixonados de outros pensadores, o roteiro de Denis e Angot se assemelha a uma reinterpretação irônica das comédias dramáticas românticas, mais profunda do que o habitual.

"Comédia romântica" e "Claire Denis" na mesma frase parece absurdo e em vários momentos o solar longa-metragem passa mesmo a imagem de corpo estranho na densa filmografia da realizadora, caracterizada por poucos diálogos, personagens duros e relacionamentos complexos. No entanto, as desventuras de Isabelle, que em outras mãos poderiam render uma história boba focada em triângulos amorosos, têm aqui as tintas dramáticas que Claire domina como poucos.

Preste atenção, este é o retrato de uma mulher madura; mãe, mas não definida por isso – a filha só aparece em uma cena –; profissional; sexualmente ativa desde a primeira sequência; inserida num contexto social; que é desejada e deseja; humilha e é humilhada; chora e goza; revela; mente; busca amar. Não é todo dia que uma personagem assim assume o protagonismo e nesse sentido Deixe a Luz do Sol Entrar evoca excelente trabalho pouco lembrado de Denis em que o querer feminino é igualmente evidenciado, Vendredi Soir.

A sensualidade não verbal da aproximação de um completo estranho do filme de 2002, estrelado por Valerie Lemercier, aqui dá lugar ao falatório insatisfeito de Isabelle. A quantidade de palavras disparadas pela personagem de Binoche não combina com o estilo de Claire, mas se encaixa perfeitamente no estereótipo do cinema francês baseado na fala e da tagarelice feminina. É sagaz a paródia também quando a bela Isabelle expressa abandonada sozinha no sofá seus pensamentos em voz alta e Etta James canta ao fundo numa óbvia referência ao cinema americano, especialista na pasteurização do gênero.

Ao contrário do que sugere o cartaz e o título motivacional, no entanto, Deixe a Luz do Sol Entrar na maior parte do tempo não é tão “pra cima”, e os relacionamentos de Isabelle representam as interações entre classes no contexto socioeconômico: com um banqueiro arrogante ela experimenta o desdém e o jogo de interesses; com um artista sensível como ela acaba refém de uma teia de palavras mais complexa que a própria, vendo-se obrigada a mudar de estratégia; e com um homem do campo enfrenta os desafios de uma troca isolada, sem pontos em comum para além da química sexual. É mais do que meramente encontrar um amor – e tal sentimento não deixa de englobar admiração, dinheiro, passado, coragem... –, mas como afirma personagem recorrente, é impossível ter tudo.

Colaboradora de longa data de Claire Denis, a competente Agnès Godard assina a direção de fotografia que jamais perde de vista a protagonista – com especial atenção para seus cabelos desnivelados e salto alto. Em impecável mise-en-scène, as movimentações dos atores coreografadas e calculadas do primeiro caso dão lugar à intimidade dos closes no segundo romance e o terceiro é sintetizado na dança impulsiva que o inicia.

Apoiada por elenco masculino sólido, composto por Xavier Beauvois, Nicolas DuvauchellePaul Blain e Bruno Podalydès, Juliette Binoche não tem páreo no quesito magnetismo e faz curioso bate-bola com Gérard Depardieu, numa sequência por si só muito boa, mas ainda melhor considerando que é o primeiro encontro dos gigantes no cinema e há alguns anos eles tiveram uma esquisita altercação via imprensa.

Conhecemos melhor Isabelle conforme ela vai se embrenhando e machucando na floresta das paixões, numa compreensível necessidade, assumindo riscos e entendendo o que quer. Um pouco diferente, mas ainda a mesma, Claire Denis faz bem em lembrar que amar não é tão fácil, divertido e leve como o cinema tantas vezes faz parecer.

“A errância amorosa tem seus lados cômicos: parece um balé, mais ou menos rápido conforme a velocidade do sujeito infiel; mas é também uma grande ópera” - Richard Wagner citado por Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso.