Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
As Duas Irenes

Irene através do espelho

por Bruno Carmelo

Irene (Priscila Bittencourt) encontra-se numa fase complicada da vida. Em plena puberdade, a jovem sofre com as angústias típicas da idade, mas também tem que se conformar com a posição de filha do meio: ela não recebe a mesma atenção da irmã mais velha, que se prepara para o aguardado baile de debutante, nem ganha os mesmos cuidados da irmã mais nova, pequena demais para se virar sozinha. A sensação de imobilidade é ainda maior por morar num vilarejo do interior, onde todas as pessoas se conhecem e se vigiam.

É neste momento que a garota descobre a segunda família de seu pai, numa cidade vizinha. Tonico (Marco Ricca) possui outra esposa, e principalmente outra filha, de mesma idade, também batizada Irene (Isabela Torres). Para complicar a equação familiar, as duas famílias pertencem a grupos socioeconômicos diferentes (a “oficial” possui muito mais recursos), e a Irene protagonista, tímida e emburrada, encontra um duplo de si mesmo mais exuberante e experiente. Ou seja, além de disputar a atenção do pai, Irene deve enfrentar a concorrência com uma versão mais atraente de si própria.

As implicações sociais, psicológicas e políticas dessa premissa são de uma complexidade ímpar. O que significa para uma adolescente descobrir outra Irene, de corpo mais desenvolvido, e igualmente amada pelo pai? De que maneira as duas jovens, logo transformadas em amigas, podem enfrentar a hipocrisia da vida adulta do alto de seus treze anos de idade? O que significa hoje em dia para a mulher se impor diante do machismo nas pequenas cidades? Quais são as ferramentas necessárias para manter escondida - ou tacitamente aceita - durante tanto tempo a vida dupla?

Infelizmente, As Duas Irenes não pretende se aprofundar em nenhuma dessas questões. Com exceção de raros recursos estéticos destinados a representar a figura do duplo (Irene se vê refletida no espelho do quarto), a trama ignora a perversidade do conflito e o rígido contexto social para se ater às regras da passagem à fase adulta. Neste sentido, a produção é parente próxima de Mãe Só Há Uma, que também se apoiava em um controverso contexto social para refletir as descobertas da identidade do protagonista. Irene pensa no primeiro beijo, na transformação de seu corpo, na independência em relação à mãe e no poder que possui por ter descoberto a verdade sobre o pai. De modo curioso, o diretor faz da situação atípica das garotas uma metáfora para as dúvidas universais de qualquer adolescente.

Como coming of age story, o filme se sai muito bem. Ambas atrizes transmitem com naturalidade as angústias da juventude, além de possuírem ótima interação. Diante de tantas cenas úteis, destinadas a fazer avançar a trama, os melhores momentos são aqueles destinados apenas a aprofundar a construção das personagens: os passeios de bicicleta, a tarde penteando cabelos, a diversão vendo os garotos mergulhando. As salas de cinema também ganham uma função curiosa no roteiro. Existe delicadeza no retrato dessas pessoas, especialmente das mulheres: Inês Peixoto, como Neuza, continua sendo uma das atrizes mais interessantes do cinema brasileiro atual, e Teuda Bara, como a empregada Madalena, transmite ternura em cada cena. Talvez a única figura vista com condescendência seja o homem dessa história, construído de modo realista, porém hermético ao público já que o projeto se atém o ponto de vista da filha.

Os enquadramentos compõem a estética simples, delicada, sem arroubos poéticos nem preciosistas. A iluminação é precisa, os movimentos de câmera parecem minuciosamente estudados, a imagem apresenta nitidez excessiva. Tudo é cuidadoso, limpo, sem asperezas nem sujeiras, como o vestido impecável da debutante. Talvez As Duas Irenes se tornasse um estudo sombrio sobre o duplo nas mãos de outro cineasta - imagina o que Cláudio Assis faria com essas mulheres? Meira prefere uma condução firme, elegante, embora pouco ousada. De qualquer modo, trata-se de um belo cinema de personagens, um drama seguro que demonstra o potencial do diretor e das duas jovens atrizes.

Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.