Ícaro: Crítica AdoroCinema

Lance Armstrong, você se lembra? Chamado de “o maior ciclista de todos os tempos” pelas sete vitórias consecutivas no Tour de France após superar um câncer, perdeu todos os títulos ao confessar o uso constante de substâncias proibidas. O caso rendeu de 2004 a 2013 e no ano seguinte o cineasta e ciclista amador Bryan Fogel, incomodado por Lance nunca ter sido reprovado em testes antidoping, decidiu colocar o obviamente falho sistema à prova, usando medicamentos para melhorar seu desempenho numa árdua competição. Nasce o embrião de Ícaro.

Bryan, que como ator fez A Montanha Enfeitiçada, se põe em papel equivalente ao de Morgan Spurlock em Super Size Me – A Dieta do Palhaço e registra sua missão autoimposta como num vlog produzido com algum dinheiro (há cameraman e boa captação de áudio) e pouca visão cinematográfica. Quando aquele que seria seu orientador na dopagem desiste de contribuir, Bryan acaba fazendo contato com o químico russo Grigory Rodchenkov, figura carismática que melhora o filme já na primeira aparição. Diretor de laboratório credenciado pela WADA (Agência Mundial Antidoping) em Moscou, o espirituoso Grigory tem brilho de protagonista, todo o humor que falta a Fogel, conhecimento e poder no assunto doping e nenhum medo de falar abertamente disso diante das câmeras.

O diretor aproveita o livre acesso que ganha a informações privilegiadas e quando aquele que seria o clímax de seu experimento dá completamente errado, a história continua, afinal ele tem algo muito maior em mãos. O plot twist do filme, no entanto, não vem da esperteza do cineasta, mas sim do puro acaso. Sorte e azar, dependendo do afetado. Um documentário alemão denuncia um enorme esquema de doping russo e Grigory perde o sorriso fácil e a calma ao se tornar uma espécie de Edward Snowden, perigoso por saber demais e declarado inimigo de seu país.

Bryan Fogel, ciclista que queria desmascarar o sistema, perde o destaque e o controle de seu próprio projeto, adaptando-se como consegue às posições de protetor, intermediário, entrevistador, único aliado e cúmplice. Desvelar uma conspiração internacional envolvendo até a KGB é bem mais do que o realizador buscava em seu registro e seu despreparo para lidar com a bola de neve que só cresce é evidente, assim como a resistência em aceitar a nova posição de coadjuvante. Como que soterrado pelo tamanho do escândalo, em demasiado pesado para suas habilidades cinematográficas, o cineasta sem distanciamento vai sendo levado pelos acontecimentos incontroláveis; logo ele, que tinha um projeto tão maquinado no princípio.

Usada na abertura de Ícaro, a clássica frase do escritor George Orwell sobre o caráter revolucionário de dizer a verdade só passa a fazer sentido na metade do longa, quando de fato a trama deslancha – ou começa, sendo mais radical. O protagonista encontra-se em risco, o filme encontra-se em risco, os Jogos Olímpicos encontram-se em risco. Dedicado aos delatores, Ícaro é especialmente esforçado na construção de uma imagem boa de Grigory Rodchenkov, usando como base o clássico romance distópico 1984, mostrado como seu livro de cabeceira. A partir de determinado momento o doc inclusive se assemelha bastante a um perfil, deixando brevemente o aspecto de denúncia para justificar os atos do químico expondo seu passado traumático.

Sem um estilo claramente definido, com trechos em animação, entrevistas bem produzidas, eventual adoção de capítulos, captura de tela de computador e câmera na mão, Ícaro não tem unidade narrativa e funciona melhor se analisado como testemunho da importância de se estar no lugar certo na hora certa e da imprevisibilidade do ato de documentar. A ineficácia do teste de doping, afinal, é algo a respeito do qual o realizador já tem certeza desde o começo e a montagem apresenta logo nos minutos iniciais especialistas atestando sua constatação. Byan Fogel tem um filme, ainda que irregular e cansativo, graças a um contato aleatório que conseguiu e é interessante acompanhar a transformação de seu projeto, mas produzir uma obra audiovisual de alta qualidade tendo apenas abundância de informações é algo para trapaceiros de alto nível, coisa que, apesar das tentativas, esse escravo do ego não consegue ser.