Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Como É Cruel Viver Assim

Uma pizza mezzo diversão, mezzo reflexão

por Renato Hermsdorff

É bem possível que daqui a alguns anos você se esqueça de que assistiu a Como É Cruel Viver Assim. E, acredite, isso é um elogio. Longe do viés pretensioso dos filmes de arte, igualmente distante da pasteurização das comédias televisivas para o cinema, o longa de Julia Rezende (Ponte Aérea, Um Namorado para Minha Mulher) é a receita para o "filme médio" que tanta falta faz ao cinema nacional: uma pizza mezzo diversão, mezzo reflexão.

Baseada na peça homônima escrita por Fernando Ceylão, a produção conta a história de quatro suburbanos inexperientes no mundo do crime que resolvem praticar um sequestro na tentativa de mudarem suas vidas. (A linguagem cinematográfica é tão natural, aqui, que fica difícil imaginar esse roteiro confinado a um palco).

São eles: Vladimir (Marcelo Valle), o desempregado sem perspectiva; a namorada Clívia (Fabiula Nascimento), que não almeja nada mais do que casar; Regina (Débora Lamm), uma “periguete” cansada dos trabalhos domésticos em casa de bacana; e o abobalhado Primo (Silvio Guindane), tratado a pão de ló pela mãe, mas um tanto perdido na vida.

No fundo, tudo que eles querem pode ser resumido em uma palavra: reconhecimento. E, nesse sentido, o quarteto atrapalhado é a síntese do Brasil. (E ironicamente organizado dentro de uma estrutura narrativa “tipicamente” argentina, ou o que se convencionou chamar de, o que significa dizer que o nível de criatividade aqui está no mesmo patamar dos melhores textos para o cinema daquele país que chegaram recentemente ao nosso).

Se o perfil socioeconômico dos personagens é algo de fazer chorar (é de uma parcela sem oportunidades da população de que estamos falando, afinal), a sequência de ações patéticas praticadas por eles, por outro, garante boas risadas. E, para fazer essa mescla, Ceylão inteligentemente brinca com uma ferramenta poderosa, que é a inversão de expectativas. Nesse ponto, vá lá, a obra dialoga com a filmografia de outro país (chegamos nos Estados Unidos) e lembra os roteiros por ora nonsense dos Irmãos Coen (Fargo, Queime Depois de Ler).

É quando a adrenalina de planejar um crime, a espera de cometê-lo ou o mesmo o disparo de uma arma são deliciosamente interrompidos pela frivolidade de uma frase dita num português incorreto (e prontamente corrigida), por um maço de cigarro fora do lugar, pela ideia de receita que parecia impossível de ser realizada na cozinha.

Com alguns coadjuvantes que sobram (no mau sentido) - como uma dondoca caricata ou o chefe da “milícia”, também de tom destoante (à exceção do bandido de bom coração interpretado por Milhem Cortaz com uma cafajestagem cativante) -, é nos “trapalhões da periferia” que mora a essência do filme. Um mosaico de tipos muito bem definidos que funciona uníssono, de modo que destacar qualquer atuação (seja Marcelo, Fabiula, Débora ou Silvio) seria injusto com o outro.

“Esperando Godot”, os personagens são jogados numa linha narrativa que contraria as convenções de roteiro, numa trama que diz muito mais do que o que aparenta na superfície.

Sem duvidar da inteligência do público, sem aspirar impressionar seus pares, Julia Rezende vem trilhando um caminho mais do que digno no cinema comercial brasileiro.

E como é bom rir de si mesmo! Ainda que seja um sorriso amarelo. Com a boca cheia de purê de batata à milanesa (?!)