Histórias de abandono
por Bruno CarmeloA câmera percorre um terreno abandonado, cheio de crucifixos – um antigo cemitério no Chile. Depois, desliza suavemente pelas ruas vazias, pelas casas destruídas, pelas fábricas desativadas. Nenhum som de pessoas, animais ou máquinas. Durante toda a duração de Cidades Fantasmas, a direção mantém o movimento adiante, o passeio lento e constante, avançando sobre escombros como se inspecionasse cada centímetro dos espaços, apenas para deixar a sensação de andar em círculos – afinal, que caminhos pode ter uma cidade vazia?
O diretor Tyrell Spencer reúne quatro histórias de cidades abandonadas. Humberstone (Chile), Fordlândia (Brasil), Armero (Colômbia) e Epecuén (Argentina) foram despovoadas por motivos distintos: ora a única fonte de renda se esgotou, como as minas de sal no território chileno, ora uma enchente tomou conta da cidade e impediu o retorno, no caso da cidade argentina. Os motivos imediatos são de ordem natural, porém o documentário faz questão de ressaltar que os episódios dolorosos foram causados pela mão dos homens: as autoridades sabiam da erupção do vulcão na Colômbia e poderiam ter alertado os habitantes, mas se calaram para não abalar a economia local; os políticos argentinos conheciam o risco de inundação da cidade vizinha, mas desviaram artificialmente o curso de um rio para evitar os danos em suas terras particulares.
Cidades Fantasmas relata o descaso no pretérito imperfeito – distante portanto do imediatismo do cinema-denúncia e do saudosismo do cinema nostálgico. O cineasta evita mostrar imagens das cidades antigamente, deixando que as ruínas falem por si só, e que os belos depoimentos (quase sempre em voz off, de modo fantasmático, como se as vozes emanassem dos escombros) se encarreguem de sugerir uma ideia remota de prosperidade. Temos um embate entre a vida pacífica e “extremamente feliz”, sugerida por uma entrevistada, e as imagens de desolação. O som contrapõe a imagem, criando um efeito dialético potente.
Ao mesmo tempo, o projeto adota uma admirável cartilha estética: os espaços são os verdadeiros personagens, constituindo uma narrativa por si próprios, enquanto a fotografia capta as luzes naturais, as frestas do sol entrando nos galpões enferrujados, os céus nublados da cidade que já foi um balneário ensolarado. Por exclusão, ou talvez por oposição, a falta de pessoas e elementos funciona como um indício das cidades que não existem mais. Spencer embarca na representação pela ausência, na sugestão de mortes e desaparecimentos embutidos na arquitetura da destruição. Isto é dito de modo pausado, simples, em ritmo coeso e contemplativo. Os resquícios das cidades conservam uma beleza triste, em tom menor, associada à discreta trilha sonora.
O documentário alia preocupação formal e discurso político, como nos melhores projetos de tendência sociológica ou antropológica. O discurso se torna complexo pelo exercício metonímico: temos o presente pelo passado, o vestígio pelo referente, as quatro cidades por todas as outras abandonadas, as poucas vozes pelo discurso de uma cidade inteira, os fragmentos de casas como símbolos de um capitalismo predatório e do abuso de poder transparentes em cada história.