Poesia da terra, terra da poesia
por Bruno CarmeloEste documentário se articula em torno de um importante jogo de opostos. Por um lado, sua estrutura é bastante simples: diversos repentistas declamam os versos próprios ou dos grandes poetas de sua terra à câmera do diretor Petrônio Lorena, enquanto a imagem busca retratar a rotina dos vilarejos humildes do Vale do Pajeú, na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. Por outro lado, o título é extenso e solene, fragmento de uma poesia rebuscada, belíssima em sua métrica, suas letras, sua compreensão do mundo. O filme se constrói no choque entre o simples e o sofisticado, o popular e o erudito, o pobre e o rico.
Os contrastes são muito bem captados por sons e imagens. A fotografia se encarrega de apreender a beleza ambiente sem idealizá-la nem decorá-la com luzes artificiais. A montagem efetua pequenas dissociações de som e imagem, suficientes para provocar o espectador ao inserir estas reflexões sobre vida e morte no cenário muito específico do nordeste brasileiro. A captação de som e sua mixagem são simples e eficientes, explorando o aspecto local, cru e espontâneo, tão importantes ao repente. Os aspectos técnicos e estéticos são ao mesmo tempo discretos e precisos.
O diretor retrata as interações entre moradores sem chamar atenção demasiada para seu próprio trabalho. O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das Minhas Amarguras representa uma homenagem aos ícones invisíveis da cultura popular. Trata-se de um projeto politizado sem citar partidos nem instituições: ele transmite seu discurso político pela forma livre como cita os versos, pela interação tranquila das pessoas em volta de uma mesa, com comida e cerveja, pela liberdade de sugerir a sexualidade das mulheres e a tristeza dos homens, desconstruindo um imaginário patriarcal arraigado em regiões tradicionais.
Os poetas retratados, de pelo menos três gerações diferentes, estão sempre um passo à frente de seus comparsas numa visão progressiva e filosófica do mundo. Para quem limita a ideia de educação à estrutura formal da academia, basta ver o rico lirismo de cada verso, os motes lembrados décadas após sua criação espontânea, a lembrança exata da poesia e dos poetas na mente daqueles habitantes. Lorena retrata a arte como forma de permanência – logo a arte oral, imaterial do repente –, além de uma função social e uma expressão legítima dos povos. Conhecemos mais sobre aqueles moradores através das glosas do que conheceríamos pelos dados de suas famílias, sua renda per capita, seus trabalhos.
Nos vinte minutos finais, o projeto brinca mais com as imagens, investindo em sobreposições, projeções, abstrações. Estes recursos trazem um estilo estrangeiro ao naturalismo adotado até então, algo que talvez soe positivo por enriquecer a textura narrativa, mas poderia ser negativo por tornar a conclusão pouco coesa em relação à beleza cotidiana pregada até então. É possível que essa discrepância apenas reforce as contradições adotadas desde o início: quando acreditamos que o documentário nos leva para um caminho, ele surpreende e percorre outro rumo. Para quem acredita que o filme será uma mera sequência de poemas recitados, ele oferece ambição estética e variações de linguagem. Para quem espera uma singela ode à poesia, encontra um comentário complexo sobre uma região e um tempo específicos do país.