Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Soul

Sobre as pequenas coisas

por Barbara Demerov

Por mais fantasiosas, coloridas e aventurescas que sejam, as animações da Pixar sempre tocam em pontos muito humanos. Isso está cada vez mais claro em suas produções mais recentes, tais como Dois IrmãosViva - A Vida é uma Festa e Divertida Mente, que exploram emoções, luto, perdas e relacionamentos. Soul, o mais recente lançamento do estúdio que estreia diretamente no Disney+, fala sobre questões existenciais de uma forma tão simples quanto complexa, trazendo reflexões na forma de pequenas criaturas adoráveis - seguindo o padrão Pixar de ser.

Os três atos de Soul diferem muito entre si e isso é algo que dificulta, em partes, a compreensão do que o filme quer passar ao espectador. Mas, por outro lado, são diversos os símbolos e materiais para reflexão em sua forma final. Se no primeiro ato temos um personagem que está em negação diante da morte e no segundo o clima de aventura se propaga do jeito que muitos esperam, existe algo no ato final que une todos os detalhes do que foi visto anteriormente - e que talvez passem despercebidos. Assim como na vida, às vezes perdemos de vista certas particularidades que, lá na frente, vemos que foram necessárias para dar sentido a tudo. E aí entramos naquele velho clichê: "o que importa é a jornada, não o destino final".

Animação mescla existencialismo e mensagens puramente humanas com muitas cores

Soul enquadra no protagonista Joe tal clichê de forma natural ao longo da narrativa, trazendo informações sobre o professor de música aos poucos, mas com um molde bem delineado: ele ama música e sempre sonhou em tocar em shows com artistas que admira. Quando finalmente tem a chance de realizar este desejo que alimenta desde quando era jovem, Joe se acidenta e sua alma se separa do corpo. É neste ponto que surge a reflexão sobre encarar uma eventual partida do mundo físico, mas o protagonista reiventa as regras quando chega a um local inusitado: um centro fora da Terra feito para formar novas almas.

Seu foco em não morrer inicialmente traz o questionamento sobre a visão que temos sobre a morte, mas a mensagem logo se transporta para o contexto de refletir sobre o que foi feito em vida. "Eu fiz o que queria ou apenas vivi esperando por algo que nunca aconteceu?" é uma pergunta que sintetiza boa parte da trama. Quando Joe repensa suas escolhas e se questiona, o diretor Pete Docter assume os pontos humanos citados no início do texto. Mas toda sensibilidade exposta só é sentida com a ajuda de outra personagem que não só dá novos rumos à Joe como também ao filme em si: a pequena 22, uma alma que nunca encontrou seu verdadeiro propósito e que, após vivenciar tantas reprovações, perdeu a vontade de começar uma vida na Terra.

A dinâmica entre Joe e 22 impulsiona Soul a crescer em diferentes vertentes. Seja na história pessoal do músico ou na situação de 22, que sempre viveu no mesmo lugar sem entender quem é de verdade, a animação trabalha a já comentada ideia de se conquistar algo distante sem olhar para o lado. Ao mesmo tempo em que Joe segue firme em seu sonho de ser um músico "de verdade", mesmo ensinando crianças, 22 se apaixona pelos detalhes de uma rotina em Nova York, atentando-se a sutilezas como ouvir um músico no metrô, comer um pedaço de pizza ou observar folhas seguindo o vento.

Os ensinamentos que um dá ao outro (especialmente com a troca de corpos, a saída mais "tradicional" da animação para trazer entretenimento) ganham força quando a narrativa amarra bem os seus nós. Como a mensagem final é verdadeiramente simples e humana, Docter e o time de roteiristas entendem que não é preciso apresentar mais fantasia que realidade. É claro que, falando em Pixar, a criatividade visual na criação de diferentes mundos e criaturas tem seu peso no resultado final; mas, em Soul, há equilíbrio no drama e na comédia, algo que é percebido nos tons de cores (o uso do azul, por exemplo, que fala sobre conexão e espiritualidade) e no número reduzido de alívios cômicos.

Soul não se trata de uma reinvenção do estúdio, tampouco aborda um tema inédito; a graça de tudo está no estilo deste novo universo paralelo (que remete ao que já vimos em Divertida Mente), no existencialismo de Joe e na insegurança de 22. Combinados, estes elementos trazem diferentes aspectos a uma só história. Mais uma vez, o foco aqui não é o de entreter o público infantil. Para além disso, é o de causar uma possível epifania no público adulto - algo bem-vindo sempre, mas especialmente em um ano como o de 2020.