Contra tudo o que está aí
por João Vítor FigueiraNenhum outro lançamento nacional de 2018 abraça o zeitgeist do ideário coletivo de parte do país e também do mercado cinematográfico internacional como O Doutrinador. Por um lado, trata-se da primeira grande produção nacional de super-herói baseada em uma HQ a ser produzida no Brasil, acompanhando uma tendência hollywoodiana que, ano após ano, apenas dá novas e contundentes demonstrações de força. Por outro, a proposta do filme reflete os sentimentos sociais de uma nação que nutre da desconfiança ao asco por seus líderes políticos.
Baseado na série de quadrinhos de mesmo nome da autoria de Luciano Cunha, O Doutrinador é um filme de ação competente, uma obra tecnicamente bem realizada e bem acabada, espécime de rara sofisticação técnica no cenário brasileiro. Ao mesmo tempo, o enredo simplório até se esforça para ser menos maniqueísta, oferecendo breves freios e contrapesos para as atitudes do protagonista, mas oferece pouca reflexão. Apesar de ambos os filmes partirem de um pessimismo para com as instituições públicas e dialogarem com o cinema policial norte-americano, esqueça a comparação com Tropa de Elite. No verniz, a adaptação dirigida por Gustavo Bonafé (codiretor do bom Legalize Já - Amizade Nunca Morre) tem a política como tema. Na prática, é raso o comentário que o filme traz sobre a imoralidade com a coisa pública. A obra é sintomática ao simbolizar um retrato da insatisfação do brasileiro médio, mas não parece interessada em articular um discurso que seja mais do que um mero espelho de indignações.
No filme, Kiko Pissolato interpreta o policial Miguel Montessant, que integra uma divisão altamente treinada da polícia empenhada em enquadrar políticos corruptos, uma espécie de Operação Lava Jato conduzida por agentes da SWAT. Quando a investigação consegue chegar ao inescrupuloso governador Sandro Corrêa, vivido por Eduardo Moscovis, o político se esquiva da prisão com ardileza e ainda anuncia sua candidatura à Presidência da República. Mesmo inconformado, o protagonista segue sua vida. Pai divorciado, Miguel decide levar sua filha pequena para assistir um jogo da seleção brasileira (ecoando a atmosfera de euforia que precede a crise do Brasil dos anos dos grandes eventos) até que a menina é atingida por uma bala perdida em uma cena que pesa mais a mão no melodrama do que deveria. Ao se deparar com a fatal precariedade de um hospital público, que sofreu com o desvio de verbas de Corrêa, Miguel se radicaliza e encontra refúgio na violência. É o episódio que transforma Miguel no Doutrinador. Quando a guinada à violência se dá em cena, Bonafé acerta ao retratar a cena da maneira chocante, mostrando que fazer justiça com as próprias mãos é, literalmente e figuradamente, sujá-las. Para proteger sua identidade, Miguel usa uma máscara de gás que alude aos manifestantes na linha de frente dos protestos de junho de 2013.
É normal que personagens de HQs tenham seus traços de personalidades hiperbolizados, mas o retrato cartunesco e sem muitas nuances dos vilões pouco contribui para o filme. Como bem ensinaram as melhores produções de heróis, os antagonistas importam e muito. A construção de muitos diálogos sustentados em chavões também não ajuda. Ao menos Miguel é eficiente em matar. Se o enredo é capaz de diferenciar "anti-herói" de "psicopata" já são outros quinhentos.
As cenas de ação são bem dirigidas e conferem a O Doutrinador um bem vindo e necessário dinamismo. Mesmo o espectador que não está habituado aos quadrinhos vai notar que Bonafé constrói muitos planos com o esmero de quem se preocupa com a estética da imagem, com a posição de cada elemento no quadro. O cineasta lança mão de movimentos de câmera bem executados, demonstra cuidado com questões de design de produção e figurino e filma cenas de ação que vão convencer um eventual espectador com ressalvas em relação ao cinema nacional de que é possível fazer no Brasil um filme do gênero nos padrões de Hollywood. Filmado em São Paulo, mas ambientado na fictícia Santa Cruz, os esforços de pós-produção transformam a cidade em uma metrópole com ares proto-distópicos numa alusão ao estilo consagrado por Blade Runner. Com anúncios de néon invasivos, imponentes arranha-céus e uma atmosfera de decadência pautada em tons de azul e roxo, O Doutrinador tem sua cidade como uma das personagens do filme, sua própria Gotham entre os trópicos. Neste sentido, a fotografia de Rodrigo Carvalho também merece elogios.
Pissolato tem o physique du rôle que seu personagem demanda e se sai muito bem nas cenas de luta e demais cenas de ação. Mesmo quando usa a máscara, o ator é capaz de manter uma postura imponente típica de protagonista de adaptação de HQ. No quesito dramático, o ator não acrescenta muito ao arquétipo do homem bruto traumatizado sem muitas expressões e, mais uma vez, as frases de efeito do roteiro ("o que você chama de assassinato eu chamo de justiça") não ajudam. Tainá Medina (A Casa de Cecília) interpreta Nina, uma jovem hacker que colabora com o Doutrinador após ser detida e reconhecer Miguel na delegacia. O ótimo registro de Medina tem mais densidade dramática e varia entre um cinismo cool e uma certa vulnerabilidade que humaniza a personagem e aproxima o espectador dos riscos de todas aquelas situações vividas por Miguel e ela. O policial Edu, vivido por Samuel de Assis, oferece um contraponto moral para Miguel. Entre os demais nomes do elenco, os destaques de atuação ficam para Moscovis (vivendo mais um personagem sórdido depois de Berenice Procura) e Natália Lage (que interpreta a ex-esposa de Miguel).
Ao contrário do que acontece nas HQs originais, O Doutrinador evita usar o nome de políticos reais (embora evoque figuras como Sérgio Cabral e Aécio Neves) para que ao menos algum afastamento em relação à realidade seja possível. Contudo, não existe texto sem contexto. O fato do anti-herói do filme agir sem motivações político-ideológicas é quase um desafio à suspensão de descrença do espectador ciente de que vive em um país cada vez mais polarizado. Especialmente quando o filme chega ao circuito comercial de sala após o término da campanha eleitoral mais violenta da Nova República. Sendo assim, o esforço por apresentar uma presumida "ideologia neutra" não configura, por si só, um posicionamento ideológico? O discurso final de Nina dá a entender que ao menos Miguel está fazendo alguma coisa contra tudo isso que está aí. Fora das telas, uma figura como o anti-herói vivido por Pissolato, que mata primeiro e investiga depois, não seria exatamente alguém a quem exaltar.
Por fim, O Doutrinador tem um grande potencial enquanto entretenimento e mostra um alto grau de competência enquanto exercício de cinema de gênero. Talvez a discussão mais interessante seja pensar, evocando o desfecho de Batman - O Cavaleiro das Trevas, se este é o filme que merecemos ou precisamos.