Vertigem do tempo e do espaço
por Bruno CarmeloDuas sombras dentro de um barco. Um homem e uma mulher enunciam coisas de que sentirão falta ao deixar o Brasil rumo a Berlim. A longa e desconexa lista mistura sensações, animais, criações surreais. Os dois dizem que a tripulação é gentil, mas vemos o barco vazio. Escrevem cartas a alguém que desconhecemos. Eles se cruzam, mas não se falam. A imagem meio granulada, meio pixelizada, inviabiliza a delimitação do tempo: estamos no presente, no passado? Esta é a melancolia do que existiu, ou a esperança/medo do que está por vir? Quem são estes dois personagens? Por que estão partindo?
Muito Romântico desenvolve a sua narrativa como um caleidoscópio, uma alucinação de sons e imagens. O interesse dos diretores, roteiristas e atores Gustavo Jahn e Melissa Dullius encontra-se fora do palco central: durante uma grande festa na casa do casal, a câmera se fecha num cômodo com três garotas desconhecidas, quando buscam apartamento na Alemanha, vemos apenas as fachadas de prédios com uma voz off indicando preços e características dos imóveis, quando fazem sexo, os corpos são vistos em quadros separados, sem se tocar. Não há beijos neste filme “muito romântico”, que prefere sugerir o amor pelas cores, pelos sons, pelos efeitos de montagem.
O projeto se desenvolve sob o signo da performance, da videoarte. A dupla de cineastas combina uma infinidade de expressões artísticas para evocar o sentimento amoroso: a música, a dança, a pintura, o vídeo, a literatura… Esses fragmentos desconexos buscam a maneira mais complicada, em termos narrativos, de representar algo simples, e a maneira mais simples, em termos de produção, de criar estímulos complexos. Tudo vale: sobreposição, aceleração da imagem, troca súbita de atores nos papéis centrais, alternância de línguas nos diálogos, som não sincrônico e não diegético etc. A antropofogia das obras recentes de Jean-Luc Godard constitui um horizonte de referência para o projeto brasileiro-alemão.
O filme, portanto, interessa menos pela história que conta - os dois personagens são pouco mais que arquétipos de homem e mulher - do que pela engenhosidade visual. A evocação do desejo sexual sem contato físico, da fuga sem conflito anterior e do ciúme sem construção fora do apartamento são estimulantes do ponto de vista conceitual. O resultado é certamente uma bagunça, com estilos e recursos em excesso, mas talvez seja nesta alucinação constante que ele encontre sua coesão. Muito Romântico não pretende, em momento algum, possuir a mesma relação com o significado que uma narrativa clássica.
A estética torna-se ainda mais interessante quando flerta com a ficção científica. A presença de um buraco unindo tempos e espaços - metáfora potente para dois imigrantes que acabam de abandonar seu país - é associada à trilha de sons eletrônicos e efeitos remetendo às aventuras intergalácticas de décadas atrás, como O Homem Que Caiu na Terra, com David Bowie. Existe um espírito libertário e muito ambicioso neste filme, que não faz concessões ao entendimento, nem aos bons modos do cinema autoral de festivais. Uma imersão radical em sua proposta, como os melhores filmes experimentais deveriam ser.