Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Lumière! A Aventura Começa

O princípio da estética do cinema

por Bruno Carmelo

De acordo com os letreiros iniciais, este é um filme “composto e comentado” por Thierry Frémaux. O cineasta e diretor geral do festival de Cannes prefere não se colocar como “diretor”, evitando a alcunha de “um filme de” Frémaux. Para ele, os verdadeiros autores são os irmãos Auguste e Louis Lumière, e o projeto constitui uma homenagem de assumida vocação cinéfila e pedagógica. Sem uma única imagem contemporânea, apenas filmes dos próprios Lumière, o resultado se assume como um “show and tell”, no qual 108 filmes de 50 segundos se sucedem em tela, analisados por Frémaux.

O agenciamento dos curtas-metragens possui três intenções principais. A primeira delas é de resgate histórico: o documentário busca exibir cópias restauradas de obras de difícil acesso, em formato de tela original, destacando não apenas os filmes mais famosos (A Chegada do Trem na Estação, Saída dos Operários da Fábrica Lumière), mas também alguns curtas esquecidos. A narrativa parte do pressuposto que o espectador não conhece nenhuma dessas informações, explicando com calma e paixão dignas de nota. A intenção é formar novos cinéfilos, conquistar gerações que talvez jamais tenham tido contato com os precursores do cinema. Neste sentido, a seleção é minuciosa, com uma organização em capítulos que se justifica dentro da proposta. Em termos metodológicos, o projeto é tão simples quanto eficaz.

A melhor vertente do documentário é a sua segunda proposta, de análise crítica. Muito além de fornecer dados, nomes e datas, Frémaux busca explicar o ineditismo de cada enquadramento, cada escolha de imagem, cada movimento de câmera, justificando a importância dos filmes na formação de uma linguagem cinematográfica moderna. Fala-se em uso de cores, profundidade de campo, estilo de atuação, realismo e verossimilhança, apropriação e representação. Embora este aspecto seja menos acessível ao público médio, ele se revela o mais complexo do documentário, quando Frémaux demonstra não apenas seu amor, mas também seu conhecimento sobre as origens do cinema.

A vertente mais fraca do projeto, no entanto, recebe ampla atenção da montagem: a apreciação estética de Frémaux sobre os filmes dos irmãos Lumière. Os comentários são acompanhados de floreios e adjetivos: “Esse filme é um esplendor!”, “Fotografia magnífica!”, “Que filmes cheios de vida!”. Estas e outras frases de efeito se multiplicam, lembrando que o diretor pretende não apenas articular conhecimento sobre os curtas-metragens selecionados, mas também reafirmar o valor dos mesmos, no caso, a beleza e a autoria. Frémaux não insere as invenções dentro de uma linha temporal, enxergando-as apenas como consequência lógica da genialidade dos irmãos.

Assim, o diretor passa rapidamente por fatores sociológicos, econômicos e técnicos da invenção. A grande importância das imagens, neste ponto de vista, é a beleza, a perenidade, a afirmação de uma personalidade marcante e criadora como convém ao pensamento autoral tipicamente francês. Por mais que a criação fosse bastante artesanal e executada por uma equipe mínima, o diretor enxerga o cinema como um ato de criação individual, mérito de uma mente iluminada e pioneira, ao invés de uma série de conjunturas que permitiram um resultado particular. Os filmes ruins dos Lumière são convenientemente escondidos, e Frémaux trata todos os curtas como obras de arte incontestáveis, embora não fossem consideradas como arte na época, nem pelos próprios Lumière. Os irmãos chegaram a dizer que o cinema era uma invenção sem futuro, mas esta citação está ausente do discurso de Lumière! A Aventura Começa. O discurso prega o amor e a evidência do status artístico ao invés de uma construção cultural progressiva da noção do cinema como arte.

Apesar destes fatores, o projeto se destaca pela riqueza de suas análises, pela articulação enriquecedora de filmes e pelo modo como apresenta a o desenvolvimento da linguagem do cinema. Lumière! faz questão de sublinhar sua cinefilia, mas se sai muito melhor quando se revela o trabalho de um pesquisador.