A natureza decorativa
por Bruno CarmeloQuando o diretor Lawrence Wahba apresentou o filme à imprensa, ele ressaltou a dificuldade da realização: foram longos meses de trabalho, viajando por todas as partes do mundo, acordando em horas ingratas para captar o instante exato do pôr do sol. O resultado não deixa dúvidas quanto ao porte da produção e o empenho da equipe. Mas o valor associado ao esforço revela-se frágil diante de uma análise crítica: se decidirmos valorizar todas as produções que exigiram grande dedicação, o cinema brasileiro seria composto apenas por obras excelentes, sem exceção.
A impressão de dificuldade tem sido um argumento valorativo desde a arte clássica, quando as pinturas de Courbet ou Millet eram apreciadas, entre outros, pelo domínio da técnica. Com a modernidade, isso se rompe: alguns quadros “poderiam ser pintados por qualquer um”, já que seu valor estaria na particularidade do gesto, na representação do mundo, no discurso agenciado pela construção plástica. Com as imagens em cartão postal de Todas as Manhãs do Mundo, Wahba aposta na noção clássica de beleza e de valor – se a paisagem é bonita, o filme que a retrata também o seria. No entanto, faria mais sentido ler o cinema como a arte moderna que sempre foi.
Neste contexto, o projeto revela-se problemático. Primeiro, por não deixar o espectador refletir sobre nenhuma imagem por conta própria: a narração onipresente diz o que cada animal está fazendo, com qual objetivo, e o que vai acontecer depois. Enquanto isso, a trilha sonora melodramática sublinha os momentos de suspense, de tristeza diante de uma morte ou de euforia quando alguma espécie conquista seu objetivo. O choque fundamental diante de uma paisagem, ou de uma obra de arte, é impedido pela direção: nosso olhar é imediatamente conduzido por uma saturação de filtros de narração, de música, de montagem.
Segundo, o documentário adota ferramentas ficcionalizantes que prejudicam seu caráter informativo. A principal delas é a eleição de dois narradores fictícios, o Sol (Ailton Graça) e a Água (Letícia Sabatella). Eles descrevem tudo o que o espectador vê e, mais do que isso, interagem um com o outro, demonstram compaixão e opiniões próprias. Num estilo infantilizado, falam sobre a “pobre capivara”, sobre a “rainha da selva”, sobre os cavalos-marinhos “picorruchos”. Eles se dizem “mamãe” e “papai” do planeta, demonstrando uma compaixão incompatível com a reflexão – ama-se a natureza por ser natureza, pouco importando o que de fato ocorra nela. Que vença o urso ou o salmão, o discurso consideraria qualquer ação natural igualmente bela. A estrutura do filme salta de continente em continente, de espécie em espécie, mas não consegue articular nenhum discurso unitário a partir deste conjunto de informações.
Talvez ele consiga, sim, expressar uma opinião, que diz respeito à beleza da natureza. Ao longo de noventa minutos, a narrativa insiste neste ponto tão importante quanto superficial: a natureza é bela. É preciso apreciá-la, olhá-la de longe (com grandes câmeras aéreas para abarcar planícies e estepes) ou de perto (aproximação microscópica de pequenos organismos), percebendo como é singelo o seu funcionamento. O ser humano é visto como agressor desprovido de sentimentos: seria impossível qualquer interação positiva dos homens malvados com a natureza ingênua e pura. Desde a animação O Lórax (2012), o cinema de vocação infantil não concebia uma natureza tão decorativa, intocável, inerte, como uma sucessão de fotografias.
A escolha torna-se ainda mais grave por se tratar de um documentário, registro que possui maior compromisso com a realidade. As crianças poderiam aprender como os humanos são capazes de interagir positivamente com a natureza, como compreendemos mais sobre nós mesmos ao descobrir as particularidades de outros animais. Mas somos convidados a observar, de modo piedoso e paternalista, a perfeição quase divina da fauna e da flora. O tom exageradamente solene instiga a relação retórica com o cinema: alguém ousaria contestar o argumento de que a natureza é bela? Todas as Manhãs do Mundo poderia vir acompanhado de um aviso: “Silêncio. Natureza trabalhando”.
O público-alvo constitui outro problema evidente ao filme concebido para conquistar as salas de cinema. Os adultos dificilmente vão se empolgar com o didatismo e a fantasia edulcorada dos narradores, já as crianças devem ter dificuldade para acompanhar um documentário de ritmo voluntariamente lento. O empenho da equipe e a beleza clássica podem se tornar inócuos se a direção não oferecer nenhuma reflexão relevante sobre suas imagens, ou se não souber a quem seu discurso se destina. Sobram ao projeto ternura e pôr do sol, mas falta o mínimo de questionamento conceitual.