A História do tempo presente
por Bruno CarmeloBrasil, 1821. O regime escravocrata está com os dias contados, mas persiste no interior do país. Numa fazenda da cidade de Vazante, Minas Gerais, vivem donos de terras, de gado e de escravos. Em seu primeiro filme solo como diretora, Daniela Thomas (Terra Estrangeira, Linha de Passe) efetua uma reconstrução histórica bem-vinda em tempos de intenso questionamento sobre o passado racista que determina a atual configuração do país.
Por um lado, Vazante surpreende por sua construção austera. O enquadramento em scope, o preto e branco contrastado e cuidadoso, os silêncios, a alternância de planos fixos dentro do casarão e planos móveis para as caminhadas na mata são dignos de uma produção clássica. A composição extrai beleza dos recursos estéticos mais simples, como uma jovem de vestido branco correndo pela mata selvagem, ou a chuva caindo na folha seca de um riacho. Os personagens possuem um linguajar adequado à época, mas também devidamente polido, constrangido: os escravos não estão satisfeitos com sua situação, é claro, mas os senhores parecem igualmente desconfortáveis com esta construção social.
Por outro lado, o drama fornece elementos de distinção ao épico tradicional. O maior deles é a montagem, que prefere interromper as cenas antes que se tornem intensas demais, ou começar quando a ação já está em andamento, eliminando a construção do clima. Longas telas pretas quebram de maneira artificial a tensão. Cenas como o encontro do tropeiro Antônio (Adriano Carvalho) desacordado por um escravo ou o casamento forçado de uma criança (Luana Nastas) com um adulto poderiam se tornar emotivas, porém a cineasta descreve estes instantes de maneira sucinta, como se filmasse uma refeição qualquer.
Do mesmo modo, é curioso que o ponto de vista não coincida com o de nenhum personagem em especial: existem pelo menos seis protagonistas, e o filme acompanha a rotina de cada um deles de um modo externo. Adotar um tema tão complexo quanto o nosso passado racial sem um olhar definido pode ser um risco, adotado pela diretora em nome da estética da constatação: Vazante observa os dias daquelas pessoas, em longos saltos temporais (mortes, casamentos, partos), recusando-se a apontar as causas da situação ou acenar para as consequências futuras.
Assim, o filme estabelece uma relação íntima com o presente no sentido diegético, na condição do ça a été de Barthes, ou seja, a inevitabilidade de que a câmera e os atores tenham convivido no mesmo tempo e no mesmo espaço; de que aquilo tenha existido, mesmo que para as necessidades da ficção. Entretanto, não articula explicitamente um diálogo com o tempo presente no sentido de contemporaneidade. Caso o espectador queira estabelecer pontes com nossa configuração étnica atual, terá que fazê-lo por conta própria.
Pensadores de esquerda diriam que quando não se posiciona firmemente diante de uma opressão, estamos escolhendo o lado do opressor. Mas não vamos tão longe: a arte não é obrigada a interferir diretamente na realidade – ela não possui qualquer obrigação de utilidade prática, aliás. Basta dizer que a opção pela descrição ao invés da reflexão retira de Vazante seu potencial catártico, seu gravitas. Glauber Rocha certamente empregaria seu furor messiânico a um tema semelhante, e talvez Frederico Machado – pensando num exemplo mais atual – abordasse a escravidão por um viés transcendental.
Mas Daniela Thomas prefere a plasticidade das formas, os olhares ultra expressivos de seus atores e os prazeres clássicos de uma garota correndo pela casa, com os longos cabelos soltos, enquanto a câmera adequa o foco aos seus movimentos. Vazante ameaça enveredar pela catarse nos minutos finais, mas antes disso constitui um prazer competente, frio e fotográfico de nossa trajetória como país e como povo.
Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.