Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Não Devore Meu Coração

Era uma vez a História

por Bruno Carmelo

Os letreiros iniciais deste filme informam, em linhas gerais, as circunstâncias que motivaram a Guerra do Paraguai e a contagem oficial de mortos no genocídio. Citam também a atual rivalidade na fronteira entre o Paraguai e o Brasil como consequência deste período. Logo após, os letreiros informam que, neste contexto, “um garoto se apaixona por uma garota”. Passamos, no espaço de uma frase, dos fatos à lenda, da trajetória de uma nação à trajetória dos indivíduos.

Não Devore Meu Coração costura estes elementos, colocando a realidade entre parênteses: ao adotar o ponto de vista do garoto Joca (Eduardo Macedo), o mundo torna-se desproporcional, absurdo. É difícil separar boatos de fatos aos treze anos de idade, por isso o roteiro mantém uma percepção imprecisa das circunstâncias ao longo de toda a narrativa. Joca não sabe se enxerga o irmão mais velho, Fernando (Cauã Reymond), como um protetor ou o perigoso membro de uma gangue de motoqueiros, não sabe se acredita no poder místico da garota paraguaia Basano (Adeli Gonzales) ou se tem condições de enfrentá-la.

O amor é mesclado com o ódio nesta espécie de mito fundador do folclore regional. Joca adora e detesta o irmão, adora e detesta Basano. As guerras perdem o impacto imediato devido a esta estrutura: os grupos rivais de motoqueiros competem “apenas por prazer”, segundo Fernando, mas os cadáveres boiam todos os dias no rio, e fala-se muito pouco a respeito. Aborda-se um confronto tacitamente consentido, em que os verdadeiros agentes de conflito estão nos bastidores, enquanto a população torna-se cúmplice.

Talvez por isso quase todos os personagens ganhem codinomes e personalidades alternativas: o irmão mais novo é chamado de Bruce Wayne, enquanto o mais velho é Clark Kent. O líder da gangue é Telecath, a garota paraguaia é “a tatuada”, a garota-crocodilo, uma figura selvagem que o brasileiro deseja apreender e domesticar. É curiosa a metáfora do amor como pacificador de conflitos entre duas nações, como nos séculos anteriores em que a realeza de países opostos casava seus filhos para evitar invasões. Aqui, embora haja amor da parte de Joca, a união não é consensual: Basano recusa os avanços do brasileiro. Ela representa a resistência histórica diante dos brancos.

Durante uma parte considerável da narrativa, percebe-se a dificuldade em trabalhar o impacto mútuo das duas histórias paralelas. Os conflitos de Joca e de Fernando correm sem necessariamente se cruzar. Os raros pontos de intersecção correspondem aos momentos mais fortes do filme: as cenas familiares, com o pai postiço e o filho improvisado, evidenciam o bom trabalho de direção de elenco e o crescimento espantoso de Cauã Reymond como ator a cada novo filme. Ao mesmo tempo, algumas cenas podem parecer deslocadas, exageradas, mal explicadas - como nas lendas, aliás, nas quais os símbolos valem menos por sua função narrativa do que pela multiplicidade de significados oferecidos ao interlocutor.

O diretor e roteirista Felipe Bragança constrói essa história com efeitos lúdicos discretos, a exemplo da noite repleta de vaga-lumes, com direito a cenas noturnas que revelam a pixelização, o aspecto meio cru da captação digital. As belezas de Não Devore Meu Coração vão muito além do imaginário de fuga representado pelas fronteiras entre países. O filme abre-se à possibilidade do sonho, da releitura histórica pela metáfora do amor impossível. Não existe reconciliação entre Brasil e Paraguai nesta trajetória de perdedores. O próprio título, aliás, indica o domínio paraguaio nesta vingança simbólica: sempre foi Basano, a paraguaia selvagem, que teve controle do frágil brasileiro apaixonado.

Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.