Tempo é relativo
por Francisco RussoPor mais que o físico Stephen Hawking tenha praticamente sepultado qualquer possibilidade de viagem no tempo - "se elas um dia existirem, alguém já teria vindo do futuro para nos contar" -, o homem segue alimentando o sonho de, um dia, ter a capacidade de viajar rumo ao passado ou ao futuro. A ficção científica, gênero cuja natureza maior é justamente estimular a imaginação, não se cansa de oferecer possibilidades, sob as mais diversas variantes - que o diga Julio Verne ou, dentro do cinema, os ícones De Volta para o Futuro e Em Algum Lugar do Passado. A Repartição do Tempo é mais um longa-metragem a explorar o tema, só que com características tipicamente brasileiras - e é graças a elas que se torna tão saboroso.
A história começa nos anos 1980, com o dr. Brasil (o emblemático Tonico Pereira, ótimo em sua curta participação) entregando sua nova invenção, uma máquina do tempo, para ser catalogada no Registro de Patentes e Invenções (REPI). A morosidade na avaliação faz com que o aparelho logo seja guardado no estoque, só que um funcionário acaba ativando-a e, imediatamente, volta alguns minutos do tempo. Começa então um embate dentro da própria repartição entre funcionários e chefia, cujo pano de fundo é a burocracia da máquina estatal brasileira.
Para tanto, o roteiro da dupla Davi Mattos e Santiago Dellape explora bastante o velho estereótipo do funcionário público que faz de tudo, menos trabalhar - algo que já foi muito bem explorado na finada série Os Aspones, exibida pela Rede Globo em 2004 - e também a lenda urbana de que Brasília possui abrigos nucleares escondidos, construídos pela ditadura militar. O modus operandi da política brasileira também vem à tona através do chefe do REPI, fruto do nepotismo e completamente submisso à mãe, uma poderosa senadora.
Todos eles elementos servem para situar o espectador em relação a este ambiente onde reina a burocracia e a falta de compromisso com o serviço público, relegado a segundo plano. Só que, ao mesmo tempo, os funcionários do escritório são cativantes e, reunidos, oferecem uma dinâmica onde o maior culpado torna-se o próprio sistema, não o desleixo de cada um deles. Esta ambiguidade, onde os heróis são também vilões sob outro ponto de vista, é o que há de mais precioso no roteiro do longa-metragem, por manipular constantemente sensações junto ao espectador. E, também por isso, o chefe interpretado por Eucir de Souza necessariamente precisa ser caricato: apenas assim, na forma de um vilão escancarado, ele poderia ser aceito como antagonista diante de tais personagens.
Dito isto, entra então o elemento fantástico representado pela máquina do tempo. Por mais que o roteiro seja um tanto quanto frágil na forma como o tal plano do chefe se desenrola, ao mesmo tempo brinca com as complicações teóricas decorrentes de manipulações na linha temporal - é como se, neste sentido, jamais se levasse a sério! Tal espírito é também mantido pela dinâmica existente entre os próprios funcionários, mesclando interesses pessoais com a apatia generalizada em relação ao trabalho, o que resulta em situações sempre bem-humoradas.
Escancaradamente pop, A Repartição do Tempo diverte bastante ao apostar em um sarcasmo saboroso, ao mesmo tempo crítico e debochado em relação ao Brasil. Com um elenco coeso e bem afinado, com destaque especial ao Zé de André Deca, o longa ainda conta com a nostálgica participação de Dedé Santana, como um policial. Muito criativo e bem conduzido pelo diretor Santiago Dellape, trata-se de um filme que merece ser descoberto pelos espectadores.
Filme visto no 49º Festival de Brasília, em setembro de 2016.