Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Coragem

A música, instrumento de fuga

por Bruno Carmelo

Este documentário traz uma história de exceção: Felipe de Luna, jovem brasileiro criado numa favela, se interessa pelo violoncelo e investe na carreira de músico. Ele consegue chamar a atenção de uma renomada professora romena, Diana Ligeti, que o leva para Paris na intenção de aperfeiçoar sua técnica musical. Estamos, portanto, num registro de extremos, da vida sem recursos ao imaginário romântico da capital francesa.

Como pesquisa, Coragem apresenta uma falha metodológica evidente: ele possui conclusões prontas antes de desenvolver sua hipótese, ou seja, o projeto utiliza imagens para reafirmar uma ideologia que se possuía desde o princípio. Os personagens verbalizam ideias importantes e louváveis, como o poder de transformação da música e a possibilidade de união entre as artes popular e erudita, mas a comprovação destas ideias está ausente no filme. Não se demonstra como o garoto pôde desenvolver o interesse por um instrumento tão raro em seu local de origem, ou como a música poderia eventualmente transformar a comunidade onde mora. Afinal, o violoncelo é visto como oportunidade de fuga: Felipe e Diana insistem na maravilha de sair do país e morar na Europa, enquanto a família do jovem permanece em situação desfavorecida.

Outro elemento discutível diz respeito ao ponto de vista e, mais especificamente, ao local onde se posiciona a câmera. Mais do que técnica, esta é uma questão moral, especialmente num documentário. Longe da câmera invisível de um Frederick Wiseman ou da câmera explícita e assumida de Eduardo Coutinho, o diretor Sebastião Braga faz a curiosa escolha de posicionar seu tripé no meio de uma calçada, ou a dois passos de professora e aluno conversando, ou ainda no centro da sala de estar onde mãe e filho conversam.

O resultado é a impressão de artificialidade: estamos colados aos personagens, que conversam entre si como se não percebessem a câmera logo ao lado. Os diálogos soam encenados para a câmera, como se a equipe tivesse sugerido o tema para que Felipe e os amigos conversassem (como no metrô, ou na fila do aeroporto). O documentário aposta em algo que François Niney chamaria de “estrutura ficcionalizante”: seus planos de conjunto muito próximos aos personagens, tentando passar despercebidos pelos mesmos, são típicos das narrativas de ficção. Os momentos em que a professora toca diretamente para a câmera na Cité de la Musique funcionam melhor, por assumirem o caráter documental e a presença da equipe diante dos entrevistados.

Tecnicamente, Coragem decepciona. A captação de som direto dentro da casa de Felipe é frágil, assim como a luz estourada nos momentos externos. Quando se entrevista a mãe de Diana, a câmera treme, o foco se perde, os reflexos da equipe aparecem. É clara a falta de estrutura de produção para se aproximar do palco durante uma apresentação, ou para explorar a favela de que se fala de modo distante, sem aproximação real. O projeto transparece uma intenção humanitária apreciável, porém carece de desenvolvimento das vertentes biográfica e social. Como biografia, conhece-se pouco sobre Felipe para além da relação com a música, embora Diana ganhe um retrato um pouco mais completo.

Quanto ao contexto sociopolítico, não se olha ao redor de Felipe, não se analisa o caráter excepcional de sua história. De que forma outras pessoas como ele poderiam seguir o mesmo caminho? Que estruturas permitem a permeabilidade do tecido social? O que representa a música, além do sonho e da possibilidade de fugir da favela? Como os amigos de Felipe o veem, o que pensa a comunidade de ter um violoncelista logo ao lado? Como o garoto se sentiu na França, sendo estrangeiro? Coragem precisaria, justamente, ter a coragem de se arriscar em questões fundamentais à premissa.