Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Waiting for B.

Cultura do gueto

por Bruno Carmelo

Quando Beyoncé veio ao Brasil em 2013, dezenas de jovens decidiram acampar durante dois meses ao lado do estádio para garantirem que veriam a cantora de perto. Organizados em tendas, eles ouvem as músicas, treinam as coreografias e se conhecem melhor. Waiting For B. poderia ser apenas o retrato de fãs apaixonados por música, mas felizmente os diretores Paulo César Toledo e Abigail Spindel vão além ao analisarem o que a convivência na fila significa para estes jovens majoritariamente negros, gays e moradores de bairros periféricos.

Mais da metade do filme é focada na interação entre os personagens. Dentro de suas tendas, ou protegidos por policiais e pelo grande número de acampados, eles podem ser abertamente efeminados, extravagantes, usando um vocabulário próprio e gestos específicos. Estamos num gueto periférico, no qual os códigos permitem a identificação e aproximação com outros jovens, ou seja, a reafirmação da identidade sexual e de gênero pela valorização do grupo: nesta pequena bolha social, não existe problema algum em rebolar, gritar no meio da rua, nem se vestir com roupas femininas. Diante dos passantes na rua, os jovens gays são maioria, e têm poder de rebater comentários homofóbicos.

Os diretores se dedicam exageradamente à performance dos fãs de Beyoncé: eles fazem suas piadas e danças para a câmera, potencializando o comportamento por saberem que estão sendo gravados. Faltou à dupla de cineastas deixar a câmera quieta num canto até o grupo se acostumar com sua presença e começar a agir mais naturalmente. Mesmo assim, é visível como a união entre os garotos serve para fortalecê-los, e como se sentem mais protegidos com suas barracas, entre amigos, do que dormindo nas próprias casas, onde muitas vezes sofrem preconceito. Beyoncé torna-se um pretexto para o estabelecimento de um acampamento gay onde os garotos podem ser quem realmente são.

Para valorizar os contrastes culturais, o projeto apresenta raras, mas preciosas, cenas dos jovens dentro de suas casas. O público na sala de cinema ria histericamente da expressão de deboche do irmão de um garoto efeminado, ou do visível desconforto da mãe em relação ao filho. No entanto, estes são momentos dramáticos que traduzem em poucos minutos como a cultura pop-queer dos personagens é rejeitada pela estrutura patriarcal e heteronormativa. Não é por acaso que muito deles veem em Beyoncé a concretização do sonho americano, por ser uma mulher negra que enriqueceu através da arte. Os membros do acampamento falam dos Estados Unidos como um lugar onde tudo é possível, onde jamais sofreriam preconceito nem violência. A idealização contrasta com a realidade de exclusão social e agressão policial contra negros naquele país.

A melhor cena de Waiting For B. ocorre quando um jogo de futebol é organizado ao lado do acampamento. De repente, os jovens extravagantes se calam, adotam uma expressão séria, por medo de sofrer agressão do grupo numericamente superior de torcedores do São Paulo. A câmera vai até a torcida organizada para notar que, na verdade, o objeto de culto desses homens negros, periféricos e de cultura heterossexual não difere tanto daquele valorizado pelos garotos gays.

Os torcedores de futebol apresentam gestos igualmente codificados (os urros, as provocações e ameaças de agressão contra o time adversário), porém tolerados e incentivados pelos valores tradicionais. Não existe problema algum, em termos de status, para um homem heterossexual se mostrar agressivo com os amigos em uma partida de futebol, pelo contrário: é isso que se espera dele. Cada um desses homens se valoriza por reproduzir os códigos permitidos em seu núcleo. O futebol do grupo heterossexual funciona como a Beyoncé para o grupo gay.

O filme não explora mais momentos como este, tocando apenas superficialmente nos aspectos políticos latentes em cada cena. Faltava ir mais longe, filmar algumas cenas suplementares dentro das casas ou nos bairros vizinhos para captar o preconceito diário vivido pelos fãs. Mas Toledo e Spindel preferem oferecer um documentário solar, despretensioso e de curta duração, que funciona como singela introdução ao debate da cultura marginal.

Filme visto no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2016.