Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Kin

A criança com uma arma

por Bruno Carmelo

Este filme se inicia como um drama social. O garotinho negro Eli (Myles Truitt), adotado por uma família de brancos, sofre com a perda da mãe, com as lições duras do pai, com o preconceito, com a falta de amigos. Ele representa o arquétipo do herói infantil: órfão, de bom coração, e corajoso para enfrentar dificuldades. Eli é desculpado pelas eventuais traquinagens devido às boas motivações, incluindo o roubo de sucatas de ferros-velhos para conseguir um dinheiro extra. Numa dessas procuras, encontra uma arma gigantesca, capaz de explodir muros e pessoas à sua frente.

O que poderia acontecer em seguida? No caso de Kin, o herói se empodera pela capacidade de atirar nos adversários. Munido do pesado equipamento, o pré-adolescente cria coragem para enfrentar os vilões, para proteger o irmão ex-presidiário, para admirar mulheres nuas num bar de striptease. Ou seja, diante de homens maus com armas, nada melhor do que armar um “cidadão de bem”, certo? O roteiro de Daniel Casey incomoda por associar o heroísmo ao ideal patriarcal de virilidade, com direito a mulheres belas, violência, armas potentes e carros mais potentes ainda. A passagem de Eli à fase adulta ocorre num mundo predominantemente masculino, em que a única mulher e mãe simbólica é uma stripper. Para um filme de 2018, essa distribuição de papéis surpreende: os diretores Jonathan BakerJosh Baker prestam atenção a aspectos raciais, mas ainda passam longe de uma representação igualitária de gênero.

Ao menos, os diretores possuem bom senso de estilo. As cenas são muito bem construídas em termos de enquadramento e fotografia, conseguindo combinar o aspecto fantasmático da vazia Detroit com os tons azulados e lilás da ficção científica. A própria arma, uma espécie de retângulo mecânico enferrujado, opõe de maneira eficaz o analógico e o digital. É uma pena que as boas imagens sejam prejudicadas por problemas no roteiro, que vão desde o imaginário estereotipado dos gângsteres à dificuldade inacreditável de personagens equipados com a mais avançada tecnologia para encontrar Eli e resgatar o objeto roubado. A narrativa se limita à longa perseguição dos vilões ao mocinho, estendida para além da verossimilhança.

No elenco, o novato Myles Truitt se sai bem em cenas quotidianas, embora encontre dificuldades nos momentos mais sentimentais. Jack ReynorJames Franco estão limitados aos clichês de brutalidade masculina, e Zoë Kravitz rouba a cena sempre que aparece – é impressionante a capacidade da atriz em destrinchar uma personagem simples como esta. Kin desperdiça os ótimos Carrie CoonMichael B. Jordan (este último, também produtor) em papéis minúsculos, quase participações especiais. O tom geral das atuações reforça a tentativa de misturar o drama urbano sobre a pobreza com o escapismo da fantasia. O problema se encontra quando a fantasia é utilizada para resolver os conflitos humanos: para Eli, a descoberta da arma representa a superação de existência pobre e precária, permitindo a transformação em super-herói.

Pelo menos, Kin se traduz numa tentativa ousada dentro do circuito comercial de misturar recursos de gênero pouco compatíveis, oferecendo o que pretende ser o início de uma franquia muito maior. Mesmo sem atores famosos nos papéis principais, evitando se assumir como uma fantasia plena, e ocultando do público elementos fundamentais da história – há muitas surpresas e reviravoltas na parte final – o projeto demonstra confiança na capacidade de seduzir o espectador para as salas escuras. Mais do que isso, ele confia que a conclusão despertará a vontade de ver mais do pequeno herói negro que explode seus inimigos pelo bem da família tradicional e pelo direito à legítima defesa. Vivemos tempos curiosos, sem dúvida.