Os mortos pedem vingança
por Bruno Carmelo“Eu nunca vi um bar tão silencioso”, afimrma uma personagem. De fato, o bar de beira de estrada onde se passa a maior parte da ação de O Último Trago não se parece em nada com o imaginário popular deste tipo de estabelecimento. O sertão tampouco corresponde à imagem de miséria ou escapismo de tantos filmes. As pessoas deste bar retornam, dia após dia, sem sabermos de onde vêm, nem para onde vão. Onde fica este lugar mesmo? Não se sabe. No início do projeto, um mapa se queima diante dos nossos olhos, apagando as referências geográficas e temporais.
O projeto se equilibra entre a aparência realista e a configuração teatral: por um lado, é fácil acreditar naquelas figuras abandonadas, solitárias, que se cruzam no local obscuro e repleto de memórias. Os gestos dos personagens, os figurinos, os cenários e objetos criam um ambiente orgânico. Por outro lado, os gerentes do local (Rômulo Braga e Rodrigo Fischer) parecem habitar o espaço há décadas, e a concentração dos conflitos num local tão isolado soa artificial, conveniente. O filme transita entre a aparência natural, especialmente no começo, e os aspectos mitológicos e sobrenaturais da parte final, como se a jornada partisse da razão à loucura, do concreto ao abstrato.
As escolhas estéticas contribuem ao estranhamento. A belíssima fotografia de Ivo Lopes Araújo trabalha os espaços através de contrastes profundos, iluminando os personagens em feixes de luz que atravessam o bar, enquanto mergulham a maior parte do espaço na escuridão. A edição sonora permite brincar com distâncias: subitamente, uma conversa distante nos parece mais vívida do que outra acontecendo mais perto do nosso olhar, enquanto os sons do carro e de uma autoestrada são emudecidos, abafados de propósito. Os filtros multicoloridos que tomam conta da imagem explicitam uma realidade filtrada, distorcida para a criação de sensações e de distanciamento.
Aos poucos, a narrativa estabelece conexões diretas com o passado brasileiro: a revolta dos índios e índias mortos (representados por Samya de Lavor), a insurgência das mulheres negras (lideradas por Mariana Nunes), o descaso das autoridades religiosas, a busca de reparação de tantas pessoas injustiçadas nestas terras secas. Existe um conteúdo evidentemente político nestas cenas, ainda que as próprias escolhas de enquadramento, luz, som e montagem sejam muito mais políticas do que qualquer discurso verbalizado neste processo. Os diretores Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes trabalham com personagem sonâmbulos, fantasmáticos, que se cruzam aleatoriamente, sem origem nem destino. A ausência de uma causalidade e de uma linearidade constituem, em si, escolhas políticas muito fortes.
A deambulação destes marginais da história brasileira atualiza de certo modo a estética do Cinema Marginal, além de servir como importante provocação aos sentidos. Um filme como O Último Trago não é fácil, no sentido convencional do termo: ele se recusa a dar explicações imediatas, a conduzir o espectador rumo a uma recompensa cognitiva ou emocional precisa. Muitas leituras são possíveis a partir deste material, o que implica na necessidade de um espectador ativo, capaz de projetar suas leituras. Ao mesmo tempo, o projeto nunca busca o apelo fácil aos sentidos, via choque estético ou furor militante. Existe preocupação na construção de personagens pelas vias do silêncio e da contemplação. A cena em que Vicente e Cláudio manifestam uma ternura singela um pelo outro, à noite, no escuro, é de cortar o coração. A reparação nacional e a união entre marginais também se faz pelas vias do afeto.