Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Guaraní

O choque da modernidade

por Bruno Carmelo

Atilio (Emilio Barreto) é um senhor paraguaio, chefe de uma família formada apenas por mulheres. Este pescador de valores tradicionais se recusa a falar espanhol, mantendo a língua guarani de suas origens e forçando os demais a se comunicarem da mesma maneira. Quando descobre que uma filha distante, moradora de Buenos Aires, vai ter um filho homem, ele leva a neta Iara (Jazmín Bogarin) num longo trajeto até o país vizinho, para convencer a filha a ter o parto no Paraguai.

O drama funciona através da oposição entre modernidade e tradição. A neta, fã de punk rock e de camisetas bordadas, representa a nova geração aberta ao resto do mundo – ou ao aculturamento de origem norte-americana, como preferir. O avô, pelo contrário, mantém um barco antigo durante décadas e come apenas alimentos da terra. A trama de Guaraní insere a dupla de opostos num road movie combinando rios, trens, ônibus e carros até a chegada na Argentina. O trajeto proposto pelo diretor Luis Zorraquín é claro, indo do rural ao urbano, do local ao global.

Uma vantagem do projeto é evitar a defesa de um polo em detrimento do outro. O roteiro compreende as motivações de cada personagem, deixando que as brigas entre Atilio e Iara se encarreguem de evidenciar as diferenças. Os confrontos entre eles são simples, mas universais: o homem não sabe muito bem usar o dinheiro nem está acostumado com a ajuda de outras pessoas, enquanto a garota deve se confrontar à sua ingenuidade diante da sociedade globalizada. Ao invés de retratar a educação transmitida dos mais velhos aos mais novos, o filme defende a ideia de que jovens e idosos possuem a mesma quantidade de conhecimento a ensinar uns aos outros.

Diversos filmes latinos exibidos no festival de Gramado foram marcados por dificuldades técnicas decorrentes do baixo orçamento, mas a produção limitada de Guaraní não prejudica de modo algum a qualidade do resultado. A montagem impecável imprime ritmo contemplativo porém fluido, a fotografia trabalha muito bem a luz natural e os enquadramentos são funcionais ao exporem as paisagens paraguaias de modo sem idealização. O naturalismo do projeto é intensificado pelas ótimas atuações de Emilio Barreto e Jazmín Bogarín, muito confortáveis em seus papéis, imprimindo uma dinâmica quase documental aos embates da dupla.

Como bom road movie, este filme atribui importância maior ao trajeto do que ao destino. É possível surgir uma frustração diante do final suspenso, mas compreende-se que Zorraquín prefira deixar a conclusão dessa história para a imaginação de cada espectador. O mais interessante é observar o progressivo afrouxamento das visões de mundo: o avô começa a perceber a coragem da neta, enquanto ela não mais o enxerga como um homem ultrapassado. Mesmo sem otimismo excessivo, Guaraní aponta para um desfecho caloroso. O filme não fornece soluções para o embate cultural – nem teria como fazê-lo – mas observa as transformações da modernidade por um viés humanista e crítico.

Filme visto no 44º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2016.