Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
O Doutor da Felicidade

Um malandro de bom coração

por Bruno Carmelo

Um pequeno vilarejo onde todas as pessoas estão saudáveis seria uma ótima notícia para qualquer um, exceto para um pequeno médico ambicioso. Para Knock, a falta de pacientes prejudica os negócios. Na falta patologias reais, o malicioso comerciante e antigo ladrão encontra um método paliativo: ele sugere aos moradores doenças que não possuem, exagera outras, escuta com cuidado cada reclamação e termina por decretar um diagnóstico sombrio. As pessoas temem por sua saúde, então voltam, e pagam. Logo, os moradores encontram um ombro amigo, à medida que Knock enriquece.

A peça de teatro “Knock ou le Triomphe de la Médecine”, escrita por Jules Romains em 1923, é um clássico francês adaptado diversas vezes nos palcos e nos cinemas. Interpretado por uns como uma crítica à medicina transformada em comércio, e por outros como uma crítica à ingenuidade e hipocondria do povo, ela ganhou leituras ainda mais graves por surgir no período do entre-guerras, durante a ascensão do nazismo. Ora, a figura do forasteiro que chega num lugar feliz sugerindo males inexistentes e manipulando a boa fé do povo seria uma crítica velada, sob forma de humor, à ascensão de Hitler e da ideologia nazista.

Estas leituras muito distintas possuem algo em comum: o teor crítico. É justamente este o elemento ausente na nova adaptação, intitulada O Doutor da Felicidade na tradução brasileira. A diretora Lorraine Levy decidiu escalar para o papel principal um dos atores mais populares do novo cinema francês: Omar Sy, de Intocáveis e Samba. Acostumado aos personagens malandros e gentis, ele transforma o pretenso médico num sujeito eticamente contestável, mas que pelo menos escuta os moradores, dá um pouco de carinho e atenção, mesmo que através de curas fictícias. Convenientemente, este médico não é confrontado a doenças reais ou urgências médicas: a única paciente com um problema grave é enviada para longe dele, de modo a não contaminar o universo fabular, de cores fortes e música alegre, com o peso de um drama real.

O teor de fábula se constrói pela exploração da fauna típica dos pequenos vilarejos, incluindo o tolo (Christian Hecq), o gago (Yves Pignot), a ninfomaníaca (Audrey Dana), a matrona rica (Hélène Vincent), o padre invejoso (Alex Lutz), e mesmo uma Cinderela (Ana Girardot) explorada pela madrasta malvada (Sabine Azéma). Estamos no território dos contos, onde apenas uma ingenuidade profunda justificaria o apego destas pessoas ao charlatão Knock. Mas nesta história, as pessoas acreditam no que querem acreditar. Suas vidas simplórias precisam de ficção, agitação, mesmo que se trate de doenças súbitas que nunca suspeitaram ter. A comédia recorre ao imaginário - um tanto preconceituoso, diga-se de passagem - da pureza e ignorância dos habitantes do campo, contra a esperteza e malícia do homem vindo da cidade grande.

O teor político da peça original é ocultado pelo deslocamento no tempo - agora estamos nos anos 1950, depois da Segunda Guerra - enquanto Levy privilegia o humor jocoso, trapalhão, familiar. Temos pessoas tropeçando e caindo em fontes, diarreias decorando todas as paredes de um quarto, cenas de bebedeira. Por esta razão, o único núcleo realmente sério, dedicado à Cinderela/Adèle, soa deslocado da trama e precisa ser literalmente afastado dos demais para se desenvolver. Neste contexto bufão, Omar Sy emprega sua destreza habitual para o humor, embora se revele menos talentoso nos instantes dramáticos. Michel Vuillermoz, Sabine Azéma e Hélène Vincent, grandes nomes da comédia francesa, constituem adições preciosas, mas não conseguem retirar a impressão de um olhar condescendente a tantas pessoas falhas. O Doutor da Felicidade constata o charlatanismo apenas para dizer que não esta postura não é condenável, contanto que existam pessoas dispostas a ser enganadas. Entre a verdade e a ilusão, o filme prefere a ilusão.